Um
dos primeiros atos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em seu novo
governo foi revogar o decreto que reduzia as alíquotas do PIS/Pasep e da Cofins
sobre uma série de operações financeiras. E isso, na opinião de tributaristas
ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, criou um imbróglio
capaz de gerar insegurança jurídica. As informações são de Rafa
Santos repórter da revista Consultor Jurídico.
O
decreto foi assinado no último dia 30 pelo presidente em exercício Hamilton
Mourão, já que Jair Bolsonaro estava fora do país. De acordo com integrantes da
equipe de transição, tratou-se de um "presente" inesperado deixado
por um governo que vivia seus últimos momentos.
A
medida assinada por Mourão baixou a alíquota do PIS/Pasep de 0,65% para 0,33% e
a da Cofins de 4% para 2%, o que geraria impacto de aproximadamente R$ 5,8
bilhões nas contas públicas.
Lula
também revogou o decreto que dava desconto de 50% nas alíquotas do Adicional ao
Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM) a partir deste ano. A renúncia
fiscal nesse caso seria de R$ 2,44 milhões em 2023, R$ 2,49 milhões
em 2024 e R$ 2,42 milhões em 2025.
O
tal imbróglio apontado pelos tributaristas é causado pelo princípio da
anterioridade nonagesimal, que determina que qualquer alteração legal que crie
ou aumente imposto só pode produzir efeitos 90 dias após sua publicação.
Segundo os advogados, o princípio se aplica às revogações efetuadas por
Lula.
O
tributarista Breno Dias de Paula classifica a situação como um típico
e genuíno exemplo de insegurança jurídica.
"Tudo
de que o Brasil não precisa na atual quadra são condutas estatais que
prejudiquem o ambiente de negócios com mais insegurança jurídica. Certamente o
assunto será judicializado para a aplicação do princípio da
anterioridade", comentou ele.
O
tributarista lembra que o artigo 150, III, alínea "c", da
Constituição Federal, que estabelece o princípio da anterioridade, é uma
limitação ao poder de tributar e tem como objetivo proteger os contribuintes
das anomalias fazendárias que costumam ser praticadas no início e no fim do
exercício financeiro.
Na
mesma linha, Carlos Augusto Daniel, sócio do escritório Daniel e Diniz
Advocacia Tributária, explica que, apesar da grande proximidade entre os
decretos, houve um período curto de vigência daquele que reduziu as alíquotas
do PIS e da Cofins.
"Por
mais que o decreto do novo governo tenha invocado o instituto da repristinação,
isso não basta para descaracterizar o fato de que a medida representa um
aumento, e não pode ser afastado o regime temporal estabelecido pela
Constituição."
Repristinação
é o instituto jurídico que trata da validade de uma lei que é revogada por
uma norma posterior. Segundo Daniel, um caminho possível para o novo
governo seria questionar a constitucionalidade ou a legalidade do decreto
revogado, buscando o reconhecimento da sua nulidade e a eliminação de seus
efeitos, o que geraria a possibilidade de cobrança dos tributos nos próximos 90
dias.
Maria
Carolina Sampaio, head da área tributária e sócia da banca GVM
Advogados, por sua vez, comenta que a revogação de benefícios e isenções, assim
como a alteração de aspectos dos tributos, sempre foi uma discussão
presente em nossos tribunais. Ela lembra que o STF, até muito
recentemente, entendia que a redução de uma isenção ou de um benefício não
implicava majoração do tributo.
"Já
em 2020, o Supremo entendeu por bem revisitar a matéria e decidiu que a redução
de um benefício fiscal implica majoração do tributo, sujeita ao princípio da
anterioridade constitucional."
A
tributarista pondera que a revogação do decreto de Mourão que reduziu
PIS, Cofins e ARFMM não representa a anulação de um benefício fiscal
propriamente dito, mas a extinção de uma norma que reduziu uma alíquota, tudo
via decreto do Executivo.
"Essa
previsão de alíquotas em decreto, por si, já é um ponto controverso. Todavia, o
STF validou esse procedimento, especificamente para o PIS/Cofins, em 2020, no
julgamento do RE 1.043.313 e da ADI 5.277."
Sócio
do escritório Martorelli Advogados, o tributarista João Amadeus dos
Santos explica que, embora seja permitido no Direito brasileiro, o
instituto da repristinação tem algumas limitações.
"O
que é proibido é a repristinação tácita, isto é, que se presuma que a redação
antiga voltou. Ou seja, tem de ser expresso na nova norma que a antiga redação
voltou. É isso o que o artigo 2º, §3º, da Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro determina. No caso, nós temos isso no Decreto nº
11.374, que revogou a redução do PIS/Pasep e da Cofins."
Anterioridade
necessária
No entendimento de todos os especialistas consultados pela ConJur, é
necessário, sim, que seja respeitado o intervalo de 90 dias até que a revogação
do decreto de Mourão produza efeitos.
Santos
afirma que há uma complicação no caso do PIS/Cofins sobre receitas financeiras,
pois é a Lei nº 10.865/2004, em seu artigo 27, §2º, que dá ao Executivo o
poder de alterar as alíquotas mediante decreto. Esse dispositivo teve sua
constitucionalidade questionada e, recentemente, o STF atestou sua
legalidade.
"Na
tese propriamente dita, fixada para fins de repercussão geral, não foi abordada
a questão da anterioridade dos 90 dias (nonagesimal), porém, em várias
manifestações dos ministros quando do julgamento ficou consignado que o
aumento das alíquotas produzido via decreto deve, sim, obedecer à
noventena", diz ele.
Assim
sendo, o contribuinte que entender ter sido violada sua garantia
constitucional pelo novo governo pode ingressar com medida judicial.
Eduardo
Ramos, advogado especialista em Direito Tributário da Weiss Advocacia, resume
bem a questão ao lembrar que o contribuinte, quando se depara com decretos que
reduzem a carga tributária de algumas de suas receitas, espera que haja
previsibilidade. "O que resta agora é a insegurança jurídica e a enxurrada
de ações que o Judiciário deve receber nos próximos meses."
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