Por:
Carolina Delboni
As
evidentes crises de depressão e ansiedade que vivem crianças e adolescentes
pós-isolamento social colocam as escolas, que encerram o semestre letivo, sob o
árduo trabalho de resgatar a convivência para recuperar a saúde mental dos
alunos
Sabíamos,
ou imaginávamos, que o isolamento social prolongado deixaria marcas em todos nós. Quais, não tínhamos ideia. Cientistas,
neurologistas e psiquiatras se encarregaram de olhar com afinco para as sequelas que a pandemia provocou no sistema emocional
do ser humano. Institutos e Fundações estiveram à frente de estudos e levantaram dados que foram importantíssimos para
dimensionarmos o que, até então, era percepção.
Passados
27 meses, temos números e pesquisas suficientes que provam e evidenciam o
quanto a educação brasileira e a saúde mental de crianças e adolescentes vivem à beira
do abismo neste país. A frase não é força de expressão, é fato.
Um
mapeamento feito pela Secretária da Educação do Estado e Instituto
Ayrton Senna, revelou que 70% dos estudantes avaliados em contexto de pandemia
relataram sintomas de depressão e ansiedade. Do grupo, um a cada
três, afirmou ter dificuldades para conseguir se concentrar na proposta da sala
de aula, outros 18,8% relataram se sentir totalmente esgotados e sob pressão,
enquanto 18,1% disseram perder o sono por conta das preocupações e 13,6% afirmaram
a perda da confiança em si.
Estudos
realizados pelo Conselho Nacional da Juventude, em maio de 2021, mostraram
que 54% dos adolescentes passaram a sentir ansiedade, 56% utilizaram as redes sociais de forma exagerada e 48%
reclamaram de exaustão e cansaço constante.
Os
números são expressivos e o dia a dia dentro das escolas, infelizmente, é a melhor
amostra para justificá-los. Ao longo deste primeiro semestre letivo, professores e orientadores
educacionais de escolas privadas e públicas se depararam com mudanças
comportamentais expressivas entre alunos e a necessidade da busca por recursos e cuidados tornou-se primordial.
Professores
acreditam que os diferentes comportamentos apresentados pelos alunos têm
explicação e são absolutamente compreensivos dado o contexto pandemia.
Crianças e adolescentes passaram uma fase importante da construção das suas relações sociais, e da própria
identidade, onde todo universo possível se reduziu a uma tela e as quatro
paredes de casa. Impossível tal recolhimento, chamado por especialistas de
atrofia social, não os colocar diante das próprias vulnerabilidades.
Edneia
Letícia Marguti, professora de educação infantil na EMEI Guilherme Rudge,
conta que junto do comportamento eufórico de crianças entre 4 e 6 anos ao retornar ao ambiente escolar e reencontrar colegas,
percebeu que algumas trouxeram traumas consigo. "Há aquelas que chegaram
aqui e só conseguiam falar: 'água'. Só isso, sabe? Percebemos que elas chegaram
não sabendo nada ou quase nada sobre o lugar escola", diz a educadora.
"Identificamos
também uma maior dificuldade de concentração. Eles estão muito inquietos e
não prestam atenção no que a gente fala. Sentimos que algumas crianças estão
mais egoístas e sentem dificuldade de compartilhar
os brinquedos com os amigos," analisa Ednéia.
Fernando
Pimentel, coordenador do 7º, 8º e 9º ano do colégio Oswald de Andrade,
concorda com o ponto de vista. Para ele, o desejo pessoal se tornou
um imperativo mais urgente, o que dificulta a construção de um ambiente propício às aprendizagens escolares. "Além
disso, os alunos do Ensino Fundamental 2 estão numa fase da vida em que o contato com os pares é imprescindível. Parecem estar com
uma demanda represada para este contato, o que deixa as conversas paralelas
mais frequentes em sala de aula", avalia.
Para
ele, essa geração também foi privada do acesso aos contextos culturais que são combustíveis
em sala de aula e que, apesar de ter pleno acesso à informação, não sabe o que fazer diante de tantas
informações. "O que vemos neste sentido é uma certa passividade, como se
esperassem que alguém resolva os impasses típicos da aprendizagem, antes mesmo
de dedicarem esforços à resolução dos mesmos", conta.
Crianças
e adolescentes voltaram sim mais passivos ao ambiente escolar. Em sua
grande maioria, aguardam pelos comandos, não sabem muito como agir quando eles
não são dados pelos professores e perderam parte importante do repertório cultural e
social que era material de trabalho em sala de aula.
Antes
da pandemia, os alunos chegavam em sala de aula já com hipóteses e conhecimento
prévio sobre determinados assuntos. Isso porque existia troca e diálogo dentro
de casa, muitas vezes era algo que o irmão mais velho já tinha aprendido e
comentava, além da existência da vida social. Idas a parques, exposições,
clube, cinemas e shoppings eram programas que contribuíam para tal.
Doneaux,
orientadora educacional do 6o e 7o ano, do Colégio Equipe, diz que ainda
estão em processo de retomada das relações de confiança.
"Ninguém saiu ileso da pandemia, muita coisa mudou. Esses jovens passaram dois anos com suas referências estacionadas.
A gente percebe que muitas crianças sofrem com a falta de interação e de aprendizado com o
outro. Uma criança uma vez me falou que sentia falta de olhar para o colega do lado e ver a
reação da cara dele com dúvida de alguma matéria, só pra sentir que era a mesma
dúvida dela", exemplifica.
Algo
que parece muito simples, mas que é fundamental para a constituição seja da
criança, seja do adolescente. Se reconhecer entre pares e poder validar os
sentimentos são razões pelas quais as relações sociais são
basais em ambas as fases, ainda que cada uma tenha suas particularidades.
Agora
é preciso reaprender a socializar e se apresentar diante dos
colegas. Daniel Helene, coordenador dos Anos Finais do Fundamental, na Escola
Vera Cruz, conta que junto com a alegria da volta, veio também a sensação de
falta de privacidade, já que durante as aulas tinha quem pudesse fechar as câmeras,
quando não quisesse ser visto, o que na visão dele, é uma atitude comum
do adolescente. "Quando você está no presencial, não tem como fechar
a câmera, né? Você não controla mais o olhar que o outro pode depositar
sobre você. Ou pelo menos não há mais a ilusão de que você controla isso. E
dessa maneira pode ficar insuportável para eles", argumenta.
O
coordenador conta que antes da pandemia, os conflitos existiam, mas hoje
são mais frequentes. "A enfermaria da escola vive cheia. São problemas
de convivência, pequenos conflitos entre eles e às vezes brigas mais
sérias. Na verdade, não é só difícil para os alunos, mas acho que para todos da
escola e toda a sociedade, que faz com que o nosso conviver também não seja
exatamente fácil", avalia Daniel.
Maria
Aparecida Aguiar Correia da Rocha, diretora da EE Professora Maud Sá de
Miranda Monteiro, diz a escola entende que esse processo de acolhimento acontece de modo individual e
que não existem regras e por isso contam com a ajuda do Psicologia Viva,
programa oferecido pelo Governo do Estado que contribui com profissionais que
fazem palestras, trabalhos de escuta com pequenos grupos, justamente para
tentar amenizar as questões. E também com a professora Cida que é terapeuta
ocupacional e procura trazer atividades diferentes aos alunos.
Com
o suporte de materiais de circo e teatro, a professora Cida propõe atividades
lúdicas e coletivas aos alunos na tentativa de trabalhar as emoções e os
conflitos que têm aparecido na escola
Segundo
a diretora, eles têm percebido também alunos com crises evidentes de ansiedade e depressão.
"O mais estranho é que os estudantes que aparentemente estavam bem,
começaram a ter gatilhos por causa dos colegas doentes. Quando a gente se dava
conta, a maioria estava com algum problema", conta ela que já tinha
estruturado um planejamento prévio para acolher os estudantes com questões.
Para Dr.
Guilherme Polanczyk, psiquiatra da infância e adolescência, coordenador do
Núcleo de Pesquisa em Neurodesenvolvimento e Saúde Mental da USP e Chefe da
Unidade de Internação do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do
Instituto de Psiquiatria, no Hospital das Clínicas, os efeitos negativos
do pós-isolamento também se relacionam com a falta de estímulos para
criar experiências que é a base de todo desenvolvimento deles. "As
crianças, por exemplo, não desenvolveram habilidades cognitivas ou sociais e os
adolescentes também não tiveram as experiências e relações sociais esperada.
Agora é como se tivessem que viver tudo aquilo que não viveram de uma forma mais
intensa, com mais dificuldade de controlar impulsos e emoções", explica.
Ele
também enfatiza que é necessário pensar nas diferentes faixas etárias e sobre
suas tarefas de desenvolvimento e como esse contexto pode ter afetado,
sobretudo os adolescentes, já que eles foram privados de suas tarefas
de criar intimidade com outros adolescentes e de desenvolver a sua
identidade, o que difere das crianças menores, por exemplo. "Há uma
grande variabilidade do efeito da pandemia e, que depende muito da
própria saúde mental dos pais, da estrutura da família e das
dificuldades que esses jovens já tinham antes disso", esclarece.
O
RESGATE DA CONVIVÊNCIA
Diante
das novas realidades que se apresentam, as instituições de ensino buscam
desenvolver, e manter, ações em toda a rede. Antes do retorno, escolas públicas
e privadas criaram planejamentos com estratégias pedagógicas para
amenizar, acolher e intervir no sentido de coletivizar as questões que atravessam crianças e adolescentes, entendendo
que o sofrimento não é uma questão individual, mas a consequência do momento
histórico que o país inteiro viveu.
"A sociedade sofre com este retorno ao coletivo tão
fragilizado pelo isolamento, mas também pelo modo como temos lidado com a
política da vida cotidiana e pública de nosso país. Até a
reorganização do grêmio estudantil se transformou em conteúdo de
discussão dentro e fora das salas de aula, assim como as discussões sobre como
ocupamos coletivamente os espaços da escola e da cidade olhando para o
entorno", conta Ana Cristina Bortoletto Dunker, diretora da escola
Carandá.
Na
visão do coordenador Fernando Pimentel, do Oswald de Andrade, é importante
fazer investimentos intencionais para permitir àqueles que se distanciaram
na escola remota, refaçam o vínculo com os demais, tendo em vista que esses
jovens foram privados de contatos com os pares. "Hoje há alunos em
situações de sofrimento psíquico em todas as séries do Ensino
Fundamental 2. Por isso, a flexibilidade na lida com questões escolares, as diferentes formas de avaliação e de apresentação
dos conteúdos são estratégias que nos parecem importantes para lidar alguns
alunos neste momento".
"Em
nossa escola, contamos com aulas de Orientação Educacional e o Projeto
de Vida, espaços privilegiados para discutirmos o processo dos grupos. Temos
nos dedicado às reflexões em torno do respeito ao coletivo, das posturas
que contribuem ou conflitam com a sala de aula, bem como do que é esperado
deles enquanto estudantes. Percebemos que tais esforços são necessários",
avalia.
Por
outro lado, Edneia Marguti, da escola pública de educação infantil
Guilherme Rudge, vê com otimismo e esperança a recuperação das crianças mais
novas. "Apesar delas terem perdido muito com a pandemia, têm uma
facilidade muito grande de aprendizado. São muito rápidas, então acreditamos
que vão conseguir muito em breve recuperar tanto as questões de aprendizado,
como também sociais".
As
escolas também têm trabalhado com espaços de descompressão e
relaxamento como clubes de leitura, músicas e atividades dentro de projetos sociais. "O Equipe tem a
tradição de trabalhar projetos sociais, então, pensamos em retomar as
atividades para os nossos estudantes passarem por uma formação com educadores
do instituto e atuar em creches, EMEIs com atividades lúdicas e brincadeiras com
crianças da educação infantil e do ensino fundamental I", conta Mariana.
Viagens e exposições também fazem parte do programa de
resgate do repertório cultural como também das conexões das relações
sociais. Na escola Vera Cruz, por exemplo, Daniel conta que eles têm promovido
visitas a museus, exposições e até viagens já aconteceram. "Recentemente,
o sétimo ano foi ao Museu Afro Brasil e o oitavo foi ao Theatro Municipal para
ver a exposição Contramemória. Sexto, sétimo e nono ano já viajaram. A gente
tem um conjunto de atividades que são extraescolares, mas que podem
viabilizar certa reposição desse repertório", diz.
Movimentos
como estes são formas, não apenas de repertoriar os alunos novamente, como
também de cuidar das questões sociais e emocionais que eles trazem.
Originar momentos de socialização, conversas, debates e atividades que
buscam o exercício das relações sociais têm se mostrado fundamental.
Enquanto
isso, a longo prazo, precisamos pensar em formas de prevenção e cuidados com
a saúde mental dessas crianças e adolescentes."É necessário uma
reflexão mais ampla da sociedade para as questões que possam interferir no
desenvolvimento de crianças e adolescentes, levando em conta o grande número de
jovens com problemas e isso envolve escolas, famílias e Estado", finaliza
Polanczyk.
A
pandemia expôs uma questão que já era viva e agora é preciso olhar com maior
constância e gentileza. Sim, crianças e adolescentes precisam do olhar gentil
do adulto. Porque o assunto não é passageiro, infelizmente.
* colaborou Elaine Vale
Fonte: Artigo publicado originalmente pelo Estadão
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