Da Redação
A
decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, de autorizar a
prisão imediata dos quatro condenados no caso da boate Kiss é ilegal e
inconstitucional. Isso porque a suspensão de liminar não pode ser usada para
reverter Habeas Corpus e porque violou a presunção de inocência. É o que
avaliam advogados ouvidos pela ConJur.
Fux concedeu medida cautelar em suspensão de liminar para
derrubar a decisão do desembargador José Manuel Martinez Lucas,
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que deferiu liminar em Habeas Corpus
para impedir o juiz de primeiro grau de determinar a prisão imediata dos
quatro réus. Eles foram condenados pelo Tribunal do Júri por homicídio e
tentativa de homicídio pelas 242 mortes e mais de 600 feridos causados pelo
incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), na madrugada de 27 de janeiro de
2013.
Para
Fux, a execução da condenação pelo Tribunal do Júri independe do julgamento de
apelação ou qualquer outro recurso. Sua argumentação é que a segunda
instância não pode reapreciar fatos e provas quando analisar recursos à
sentença condenatória. Assim, deveria prevalecer a soberania do veredito do
júri, conforme prevê a Constituição. Em seu entendimento, a imediata
prisão imposta pelo corpo de jurados representa o interesse público na execução
da condenação.
"Nesse
sentido, considerando a altíssima reprovabilidade social das condutas dos réus,
a dimensão e a extensão dos fatos criminosos, bem como seus impactos para as
comunidades local, nacional e internacional, a decisão impugnada do Tribunal de
Justiça do Rio Grande Sul causa grave lesão à ordem pública ao desconsiderar,
sem qualquer justificativa idônea os precedentes do Supremo Tribunal
Federal e a dicção legal explícita do artigo 492, §4º, Código de Processo
Penal", declarou Fux.
O
criminalista Pierpaolo Cruz Bottini diz que a decisão de Fux não tem
embasamento legal. "O instituto da suspensão de segurança não é cabível
para Habeas Corpus. Se estamos discutindo prisão das pessoas, e há um
entendimento do Tribunal de Justiça, uma discussão do Superior Tribunal de
Justiça sobre a viabilidade de prisão em segundo grau mesmo no júri, isso tinha
que seguir as instâncias formais".
O
jurista Lenio Streck aponta que a decisão do ministro foi baseada na
Lei 8.437/1992, que dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos
do Poder Público, mas que jamais foi pensada para o âmbito penal.
"Portanto, inaplicável para sustar Habeas Corpus".
"O
STF extrapolou os limites das garantias. Já o Ministério Público do Rio Grande
do Sul deveria ter esperado que o TJ-RS julgasse o mérito do HC. Agora temos um
impasse: e se o TJ-RS conceder o HC no mérito? O MP-RS ingressará com que
medida? Não poderá usar de novo o pedido de suspensão de liminar. Só lhe
restará o recurso ordinário em Habeas Corpus. A suspensão parece mais servir
para pressionar a 1ª Câmara Criminal do TJ-RS", avalia Lenio.
Nessa
mesma linha, o advogado Aury Lopes Jr. opina que "é uma decisão
absolutamente lamentável em todos os aspectos".
"Os
réus respondem ao processo em liberdade há anos, nunca geraram qualquer
situação de perigo que justificasse uma prisão preventiva, então a decisão é
completamente despida de qualquer natureza cautelar. Nunca antes se suspendeu
uma decisão liminar em HC assim, per saltum, monocraticamente e invocando
um argumento absolutamente inadequado, pois a Lei 8.437/1992 e o próprio artigo
297 do Regimento Interno do STF não têm essa dimensão penal".
Em artigo publicado na ConJur, o criminalista Alberto
Zacharias Toron destaca que a Súmula 604 do STJ estabelece que "o
mandado de segurança não se presta para atribuir efeito suspensivo a recurso
criminal interposto pelo Ministério Público". Embora o STF tenha
precedentes da 1ª Turma afirmando a possibilidade de se executar a pena
imediatamente em caso de decisão do júri, isso não outorgava competência direta
ao STF para impor sua jurisprudência, diz Toron.
"O
sistema de justiça impõe regras que devem ser observadas. É curioso que um
tribunal que tenha uma súmula como a 691, a qual afasta a competência do STF
para conhecer de Habeas Corpus impetrado contra liminar indeferida em
outro tribunal superior, se permita conhecer de questão ainda não julgada no
tribunal de origem nem pelo STJ. Pior, o mesmo STF, com invulgar constância,
tem proclamado, até em Habeas Corpus, a impossibilidade de conhecer de matéria
não apreciada pelas instâncias inferiores. Como pode conhecer, agora,
diretamente da matéria posta pelo MP-RS?", questiona o advogado.
"Sobra,
pesa dizê-lo, a odiosa tirania monocrática, o arbítrio unipessoal contra a lei
e a Constituição. A satisfação distorcida à opinião pública com a punição
antecipada de condenados que ainda têm direito à apelação não representa nenhum
prestígio à Justiça. Atropelar regras de competência e, pior ainda, invocar uma
lei descabida para mandar prender é o 'vale tudo', é a antítese da justiça.
Submeter 'os outros' à prisão fora do figurino legal desmerece o
Judiciário", analisa Toron.
Presunção
de inocência
Luiz Fux fundamentou sua decisão de determinar a prisão imediata dos condenados
com base no artigo 492, I, "e", do Código de Processo Penal, incluído
pela lei "anticrime" (Lei 13.964/2019). O dispositivo estabelece
que o presidente do tribunal do júri determinará a execução provisória das
penas superiores a 15 anos, sem prejuízo de recursos que vierem a ser
interpostos. Os quatro já condenados no caso da boate Kiss receberam
penalidades entre 18 e 22 anos de prisão.
Lenio
Streck aponta que o STJ já decidiu que, também no júri, só é possível executar a
pena após o trânsito em julgado da sentença condenatória, como fixado pelo STF nas Ações Declaratórias de
Constitucionalidade 43, 44 e 54.
"Isso
faz com que o dispositivo da lei 'anticrime' que manda prender
automaticamente nos casos de condenações acima de 15 anos fique no limbo da
inconstitucionalidade. O que deve ser lembrado é que o STF já decidiu pelo
primado da presunção da inocência. E o STJ seguiu o STF. O desembargador do
TJ-RS seguiu a ambos. Fux é que destoou", declara o jurista.
O
júri é um órgão de primeiro grau, e suas decisões podem ser amplamente
revisadas pelo Tribunal de Justiça, inclusive em relação à questão probatória,
pela via do artigo 593, III, 'd', do CPP (quando a decisão dos jurados for
manifestamente contrária à prova dos autos), ressalta Aury Lopes Jr. "O
conceito de soberania do júri está sendo completamente distorcido, nunca teve
essa dimensão".
"Além
disso, é uma absurda violação da presunção de inocência, sendo o artigo 492, I,
'e', manifestamente inconstitucional. Se a execução antecipada da pena, em
segundo grau, é inconstitucional, o que dizer a respeito de uma decisão de
primeiro grau? Um absurdo essa leitura que está sendo feita", opina Lopes
Jr.
A
mestre em Direito Penal Jacqueline Valles lembra que o STF está
analisando a constitucionalidade do dispositivo.
No
julgamento do Recurso Extraordinário 1.235.340, já iniciado, os ministros da
Suprema Corte Luís Roberto Barroso, relator, e Dias Toffoli se manifestaram no
sentido de que a soberania do veredito do júri — que não pode ser substituído
por pronunciamento de nenhum outro tribunal — autoriza o início imediato da
execução da pena. Houve um voto divergente, do ministro Gilmar Mendes, e o
julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Ricardo
Lewandowski.
"Esse
artigo [492, I, 'e', do CPP] contraria o artigo 5º da Constituição Federal, que
versa sobre o direito à ampla defesa e prevê a prisão quando se encerram as
possibilidades de recursos. O próprio STF já definiu anteriormente que a prisão
antes do trânsito em julgado tem que ser definida com base no artigo 312 do
CPP", opina Jacqueline Valles, citando o dispositivo que estabelece as
hipóteses que autorizam a decretação de prisão preventiva.
O
criminalista Rodrigo Faucz Pereira e Silva, em artigo publicado na ConJur, avalia que o
dispositivo incluído no CPP pela lei "anticrime" não pode ser
aplicado ao caso da Boate Kiss. Isso porque o fato ocorreu em 2013, e a lei só
entrou em vigor em 2019.
"Por
mais que o artigo 2º do CPP preveja o princípio da imediatividade, a alteração
do artigo 492, I, do CPP, corresponde a uma norma que restringe diretamente a
liberdade do acusado, podendo ela ser aplicada apenas nos casos em que o fato
criminoso tenha ocorrido após a entrada em vigor da lei. Portanto, por um
critério intertemporal, a lei não poderá retroagir, devendo ser afastada a
aplicação da execução imediata da pena por esse viés".
Além
disso, o advogado destaca que a soberania dos vereditos é uma garantia
constitucional dos cidadãos, e não pode ser usada contra eles próprios.
"Ademais,
a conceituação do princípio da soberania dos vereditos é reconhecidamente
simples e direta: não se admite reforma de mérito da decisão do tribunal do
júri. O que não quer dizer que, com a decisão do júri, ocorra uma espécie de
trânsito em julgado automático. Aliás, longe disso. São inúmeros os casos de
anulação da sessão de julgamento não apenas por decisões manifestamente
contrárias à prova dos autos, mas, principalmente, por conta de
nulidade"”, afirma Rodrigo Faucz Pereira e Silva.
Com informações de Sérgio Rodas é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
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