Foto ilustração Google/Internet
Por: Veruska
Sayonara de Góis : professora na Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte (UERN) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN).
À questão "o que significa a palavra
liberdade?", feita por Roscoe Pound, podemos imaginar muitas
possibilidades. Entre tantas, a de que se possa pensar e dizer o que se quer,
bem como o direito ao dissenso e ao desacordo. A Folha
de S. Paulo, em editorial publicado no dia 30 de maio deste ano, chamou
a atenção para o efeito tóxico de palavras com o advento da internet e das
redes sociais, discutindo a regulação da liberdade de expressão e o inquérito
das fake news instaurado pelo STF.
Em um sistema republicano e democrático, a liberdade de que dispomos é a
liberdade civil, aquela definida pela legalidade. A despeito de uma perspectiva
americana ou europeia da discussão, em que se poderia exigir menos (EUA) ou
mais (Europa) controle, estamos diante de calibração de expectativas. Se em uma
literatura clássica temos J. Stuart Mill tratando "Sobre a
liberdade" e John Milton sobre uma "Aeropagítica", talvez ambos
possam ser vistos como uma utopia libertária, baseada em um evolucionismo
ético que não se comprovou.
Em uma tradição liberal, Benjamim Constant foi mais realista com o texto
"Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos", em que aponta as
diferentes perspectivas entre a participação política (liberdade coletiva) dos
antigos versus o gozo de viver a própria vida (liberdade individual) dos
modernos.
Isaiah Berlin continua sendo relevante com o ensaio "Dois conceitos
de liberdade", no qual aponta a liberdade negativa como exigência de uma
abstenção estatal e de outrem; já a liberdade positiva exige condições para uma
ação política, uma mínima qualidade que o Estado deve fornecer para o debate
público.
Em um extremo, a liberdade negativa pode levar à premissa de que eu
posso matar meus opositores (Dworkin). Em outro extremo, a liberdade positiva
pode levar o Estado a acreditar que é o editor da sociedade — na expressão do
ministro Dias Toffoli acerca do Supremo. Era exatamente contra a ideia do
Estado editor que John Milton se batia, argumentou Fernando Schüler, em sua
coluna na Folha de S. Paulo (29/7/2020).
Pulando da utopia à distopia, somos apresentados a um mundo onde a
ausência de liberdade é o resultado da tecnologia e do controle do pensamento,
a partir de "1984" (G. Orwell) e "O Conto da
aia" (M. Atwood). Entre tribalismos, populismos e justiceiros, não é
tão distópico assim, afinal.
As chamadas fake news não se contrapõem à informação verdadeira,
como se fossem uma notícia errada ou negligente. Funcionam como técnica
elaborada de desinformação, na medida em que denotam uma "mentira
organizada" (H. Arendt) e funcional, com uso de inteligência
artificial em muitas vezes.
O Superior Tribunal de Justiça afirma, em sua oitava tese (de uma série
de 13 teses, 2019) que a ampla liberdade de informação, opinião e crítica
jornalística reconhecida constitucionalmente à imprensa não é um direito
absoluto, encontrando limitações, tais como a preservação dos direitos da
personalidade, nestes incluídos os direitos à honra, à imagem, à privacidade e
à intimidade, sendo vedada a veiculação de críticas com a intenção de difamar,
injuriar ou caluniar.
Pode existir alguma liberdade para a mentira em vários aspectos, como há
para a exposição, a arte, a crítica ou o debate de quaisquer doutrinas. Mas não
existe liberdade para difamar, caluniar e injuriar, como não existe liberdade
para roubar ou matar. Ipso facto, se as pessoas o fazem,
sujeitam-se às normas.
Não há censura em se aplicar a norma jurídica, é nisso que implica a
liberdade civil.
Mas o Supremo Tribunal Federal do inquérito das fake news é outro
Supremo, não aquele Supremo do Recurso Extraordinário 511.961/SP (RE 511.961 —
Diploma de jornalista). Para aquele Supremo, em 2009 e de acordo com Gilmar
Ferreira Mendes, o exercício da atividade jornalística não deveria implicar na
exigência do diploma por não implicar riscos ou danos à coletividade e a
terceiros.
Em outras palavras, as liberdades de informação e comunicação não
ofereceriam perigo de dano. Certamente, ao tratar de si enquanto instituição e
ministros, o STF parece acreditar que a palavra, a liberdade, a informação ou a
desinformação, as notícias falsas têm o condão de implicar tanto o perigo
quanto o dano concreto.
Não que se confundam notícias erradas ou inverídicas com fake news. Mas
houve uma mudança de postura do STF quanto à interferência do Estado na
liberdade de expressão. Na pesquisa "Judicialização da comunicação
social", em que investigamos a jurisprudência do Supremo no tocante à
liberdade de expressão e comunicação social, foram encontradas 19 ações de
controle concentrado de constitucionalidade de outubro de 1988 a julho de
2018, incluídas a ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 403,
Marco Civil da Internet) e a ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5527,
Marco Civil da Internet).
Cobrindo o período de 30 anos (1988-2018), o corpus de
análise diz respeito às ações em controle concentrado de constitucionalidade,
não abarcando os paradigmáticos "caso Ellwanger" (Habeas Corpus
82424/RS) e o "caso do diploma de jornalista" (Recurso Extraordinário
511.961), que se deram por meio de controle difuso de constitucionalidade.
Assim, excetuando as ações que discorrem sobre internet, ainda em
julgamento (ADPF 403, Marco Civil da Internet e ADI 5527, Marco Civil da
Internet), na maioria dos casos o Supremo se posicionou por uma
compreensão libertária quanto aos meios de comunicação, tendente à primazia ou
à posição preferencial da liberdade de expressão e informação, e à não
intervenção do Estado.
Na declaração de inconstitucionalidade da Lei 5.250/67 (ADPF 130-7), o
Supremo, pelo teor dos votos, apontou para um modelo de comunicação social
baseado no livre mercado de ideias, cuja regulamentação viria de um clube
fechado dos grandes acordos e grandes negociadores, como as organizações
internacionais econômicas e os conglomerados corporativos — o modelo
institucional top-down. Isso é justamente o que temos com os
gigantes da tecnologia que são investigados no inquérito supremamente
controverso das fake news.
Suponhamos que essa posição libertarista era utópica por vários motivos,
como os de não aprofundar o debate sobre os danos causados pelos meios de
comunicação através de monopólio, riscos das tecnologias emergentes, prejuízos
à honra das pessoas e descumprimento das normas constitucionais quanto à
principiologia ou regime jurídico da comunicação.
Suponhamos que a implantação do Fórum Nacional do Poder Judiciário e
Liberdade de Imprensa, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, foi mais uma
formalidade que não ajudou no avanço das questões.
É insuficiente dizer que a intervenção do Estado através do STF — o
inquérito sobre as fake news — não redime a questão ou a superficialidade dos
debates quanto às liberdades de expressão e comunicação. Antes, demonstra
um timing político no STF e nos tribunais superiores, como o
do TSE, que ainda não julgou várias ações referentes à campanha eleitoral de
2018.
Voltando a Benjamim Constant: se os pós-modernos voltaram à praça
pública, e querem participar da política, é um exercício legítimo da liberdade.
Com Isaiah Berlin, se eles podem exercer a sua liberdade negativa, o Estado
precisa se abster.
Porém, se excedem do seu direito, por exigência do direito coletivo
positivo à liberdade, o Estado precisa intervir, criando um ambiente público
que evite o silenciamento de uns por outros. A proteção mais rigorosa da liberdade
de expressão não protegeria um homem falsamente gritar fogo em um teatro,
causando pânico, no argumento de Oliver Wendell Holmes Jr.
Sobre as fake news, já temos uma Constituição e leis esparsas. Mas uma
vez que a sociedade se torna mais complexa, exige-se mais Direito. Como disse
Roscoe Pound, o Direito, em contraposição às leis, precisa de juristas. Precisa
de consistência e de integridade. Por isso, é importante ressaltar que o
inquérito das fake news vai contra a jurisprudência do STF sobre o tema, em um
período de 30 anos. Fica a questão: Erramos? E, se sim, antes ou agora?
Artigo publicado na Revista eletrônica Consultor Jurídico
Para ler outras matérias acesse, www: professortacianomedrado.com
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