(*) Jonas Lima
Como
se explicam as subjetivas e abruptas revogações de licitações mesmo em
processos que demandaram meses de planejamento e justificativas expressas e
sólidas?
Infelizmente,
até os dias atuais, quando determinado vencedor de licitação não é o
"pretendido", surge a tão conhecida alegação de razões de interesse
público, conveniência e oportunidade, com as superficiais notas que,
hipoteticamente, justificariam a revogação do certame para uma mudança de
escopo do objeto licitado, do projeto básico ou algo relacionado.
Existem
casos nos quais, após quase um ano de planejamento, de inclusão da demanda com
justificativas da necessidade da contratação, pesquisa de soluções do mercado,
justificativas de preços e especificações técnicas e tudo mais da fase interna,
simplesmente, passa a constar no sistema de pregão, inesperadamente, um
simplório aviso de revogação.
Isso
logo chama atenção de interessado sensato, que de pronto requer a cópia
integral dos autos do processo e, com isso, constata a verdade real e material,
de que não há nos autos qualquer estudo técnico ou análise de consultoria
jurídica e/ou de área demandante, ou apontamentos de itens específicos a
modificar, com justificativas precisas pelas quais a licitação, de modo
abrupto, passou a não ser mais necessária.
Essa
é a famosa falsa conveniência e oportunidade para revogação de licitação, que
ocorre com o deliberado fim de afastar o "licitante inevitável", que
está com proposta correta em seus requisitos de aceitabilidade e todos os
requisitos de habilitação atendidos, mas determinadas pessoas não querem aquela
futura/eventual contratada. E o segundo fim dessa conduta é levar o Judiciário
a "não entrar no mérito administrativo" da revogação.
Em
certos casos, uma idêntica licitação, nova, mas com mesmo objeto e edital, tem
publicação em menos de um mês adiante, confirmando a fraude da revogação
anterior.
Mas
esses ilícitos deixam rastros e não são inatingíveis como pode parecer.
"Abortar"
licitação no seu último estágio em razão de "licitante indesejado" é
uma flagrante violação dos princípios da legalidade, da impessoalidade e da
igualdade do artigo 37 da Constituição Federal.
Basta
que o legitimado, que é a pessoa jurídica ou natural que, mesmo sem ter
iniciado o processo, tem direitos ou interesses que possam ser afetados pela
decisão (artigo 9º, inciso II, da Lei nº 9.784/99), verifique nos autos do
processo o seguinte:
1)
A contratação estava inserida em planejamento estratégico e plano anual de
contratações?
2)
A contratação foi precedida de ampla pesquisa de mercado, análise técnica de
soluções do mercado, mapa comparativo de preços, aprovação por áreas como a
demandante, a técnica e jurídica, justificativas de demanda e outros
instrumentos relacionados?
3)
A revogação surgiu, de modo abrupto, com o mesmo tipo exaustivo de trabalho
prévio de análise e planejamento que ocorreu quando da fase interna da
licitação?
4)
Ainda no mesmo contexto, a revogação adveio de processo minimamente similar ou
apenas surgiu da recomendação de uma ou duas pessoas em simples e-mails com
alegações genéricas e desprovidas de provas e apontamentos precisos de que será
realmente necessário mudar para se alegar necessidade de revogação?
5)
Constam dos autos as provas de que planejamento estratégico, plano anual de
contratações, estudos e pareceres antecederam aquela estranha revogação?
6)
Os motivos da revogação estão realmente indicados em pontos que serão
modificados em especificações e outros aspectos que tornam impossível
aproveitar o edital do certame a ser revogado? e
7)
Existem nos autos, por exemplo, documentos comprovando uma efetiva
desnecessidade de quantitativos e de itens, produtos ou serviços que estavam
sendo licitados?
É
importante lembrar que, para possibilitar a essencial fiscalização e o
controle, inclusive em auditorias ou produção de provas, com finalidade
disciplinar e/ou judicial, o artigo 38, §1º, da Lei nº 9.784/99 (Processo
Administrativo Federal) estabelece que: "Os elementos probatórios
deverão ser considerados na motivação do relatório e da decisão".
Como
adverte o Superior Tribunal de Justiça, não adianta rotular atos com o pretenso
escudo de conveniência, oportunidade e interesse público, porque se um ato
administrativo, ainda que seja discricionário, recebe um certo motivo
específico, então, aquele motivo precisa ser comprovado nos autos, ser
verdadeiro em causa e efeito para a revogação, além de aferível.
Note-se,
por oportuno, a questão dos motivos determinantes que vinculam os atos:
"...Na
forma da jurisprudência desta Corte, a motivação do ato administrativo deve ser
explícita, clara e congruente, vinculando o agir do administrador público e
conferindo o atributo de validade ao ato. Viciada a motivação, inválido
resultará o ato, por força da teoria dos motivos determinantes. Inteligência do
artigo 50, § 1º, da Lei nº 9.784/1999" (RMS 59.024/SC, rel. min. Sérgio
Kukina, 1ª Turma, DJe 8/9/2020).
(...)" (STJ - REsp 1907044/GO, relator: ministro Benedito Gonçalves,
1ª Turma, julgado em 10/8/2021, DJe 25/8/2021).
Feitas
tais considerações, cabe lembrar que a Lei nº 14.133/2021 estabelece a seguinte
disciplina da matéria:
"Artigo
71 — Encerradas as fases de julgamento e habilitação, e exauridos os
recursos administrativos, o processo licitatório será encaminhado à autoridade
superior, que poderá:
(...)
II - revogar a licitação por motivo de conveniência e oportunidade;
(...)
§ 2º O motivo determinante para a revogação do processo licitatório deverá ser
resultante de fato superveniente devidamente comprovado.
§ 3º Nos casos de anulação e revogação, deverá ser assegurada a prévia
manifestação dos interessados.
(...)".
Por
essa disciplina legal, não basta alegar, genericamente, conveniência e
oportunidade, sendo impositivo que o motivo da revogação seja verdadeiro, seja
decorrente de algo superveniente e com razões efetivas que justifiquem o ato de
revogação, que não pode ocorrer sem provas nos autos e sem oportunidade de
pronunciamento pela parte interessada, sendo essencial que a cópia integral do
processo esteja previamente liberada, pois do contrário não serão respeitadas
as garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa,
resguardadas, respectivamente, nos incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição
Federal.
O
regramento da nova Lei de Licitações sobre essa matéria da revogação, vale
lembrar, é o substituto do que constava do artigo 49, caput e
parágrafo terceiro, da Lei nº 8.666/83.
E
fato é que, embora com algumas diferenças de texto, a matéria permaneceu na
nova lei com certas balizas obrigatórias para qualquer revogação.
O
que se espera é que não continue a ocorrer o que sempre ocorreu com a lei
anterior, que já continha os parâmetros, mas em uma grande quantidade de casos
não era respeitada, com as revogações subjetivas e apressadas, que em momento
algum tinham coerência de argumentos, especificidade de motivos e nem provas
dos motivos dentro dos autos de determinados processos.
(*) advogado especialista em licitações e contratos, pós-graduado em Direito Público e Compliance Regulatório e sócio de Jonas Lima Sociedade de Advocacia.
Fonte: artigo
publicado pela Revista Consultor
Jurídico, 11 de fevereiro de 2022, 8h00
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