A confirmação do financiamento pelo BNDES (Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para a construção do gasoduto
Néstor Kirchner indica contradições no governo do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT), segundo especialistas ouvidos pelo Poder360.
Para
o diretor para a América Latina da ONG 350.org, Ilan Zugman, o governo brasileiro não deveria
financiar as obras. Isso porque o gasoduto vai escoar a produção de gás de
xisto na reserva de Vaca Muerta –entenda o caso mais abaixo. Esse tipo de
insumo exige a utilização da técnica de fraturamento hidráulico, mais poluente.
“Esse
anúncio nos pegou de surpresa. É uma grande contradição com o que foi falado se
o governo realmente decidir que o dinheiro do BNDES será usado para a
construção de um gasoduto que utiliza a técnica do fracking para extrair esse combustível”,
afirmou.
De
acordo com Zugman, há relatos de impactos socioambientais e de saúde no entorno
de Vaca Muerta relacionadas à exploração do gás de xisto.
O
diretor e fundador do CBIE (Centro
Brasileiro de Infraestrutura), Adriano
Pires, cita outra contradição na decisão de bancar o gasoduto na Argentina.
O país vizinho tem 16.000 km de dutos construídos, e o Brasil, só 9.400. Enquanto isso, quase metade da produção de gás do pré-sal é
reinjetada nos poços por falta de infraestrutura de escoamento.
Pires
afirma, no entanto, que uma maior oferta de gás da Argentina poderia beneficiar
o Brasil, visando a uma possível restrição na oferta do insumo boliviano.
Por
outro lado, ele vê o financiamento do gasoduto argentino como um investimento
de risco.
“O
risco é muito grande. Infelizmente, a Argentina e a América Latina como um todo
têm uma instabilidade política e regulatória muito grande. Não sabemos o que é
a Argentina daqui a 12 meses. O que é instabilidade política? Congelar o preço
do gás, proibir ou colocar imposto de exportação… isso já foi feito diversas
vezes”, disse.
FRATURAMENTO
HIDRÁULICO NO BRASIL
O
fraturamento hidráulico não é regulamentado no Brasil.
Em
dezembro de 2022, o governo do ex-presidente Jair
Bolsonaro (PL) publicou um edital para a perfuração do 1º poço
utilizando essa técnica, os dados seriam divulgados para estudo, com o objetivo
de destravar a exploração de recursos não-convencionais no país.
A
ONG 350.org pediu ao governo de transição de Lula que o edital do Poço
Transparente seja revogado, até que os impactos fossem melhor entendidos e mais
consultas fossem feitas.
“O
Brasil nunca esteve tão perto de viabilizar o fracking. Esse lançamento do edital
foi o maior passo que o Brasil já deu na busca de poder utilizar essa técnica
que já foi proibida em várias partes do mundo”, declarou Zugman.
Em
2013, a ANP (Agência
Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) licitou blocos em
formações geológicas que demandariam a técnica de fraturamento. Foram
arrematadas 72 áreas. Mas decisões judiciais em Alagoas, Bahia, Sergipe e
Paraná suspenderam a exploração nas áreas.
Em
julho de 2019, o governo do Paraná sancionou lei que proíbe o uso da técnica no
Estado. Eis a íntegra (721 KB).
Fora
do país, a técnica é proibida em lugares como Bulgária, França e Reino Unido.
O
QUE É GÁS DE XISTO
A
reserva de Vaca
Muerta, no oeste da Argentina, é uma formação geológica rica em gás e óleo
de xisto. O xisto é um tipo de rocha metamórfica que tem um aspecto folheado e
pode abrigar gás e óleo em frestas. Para extrair gás desse tipo de local há um
processo considerado muito danoso ao meio ambiente, porque é necessário quebrar
o solo, num sistema conhecido em inglês como “fracking”, derivado de
“hydraulic fracturing”.
Nesse
tipo de processo, é necessário fazer uma perfuração vertical no solo até uma
determinada profundidade. Depois, a broca muda para a direção horizontal para
ir fraturando o solo, inserindo água e produtos químicos e assim liberando gás
e óleo que possa estar “preso” entre as rochas.
O
gás de xisto é muito explorado nos Estados Unidos e foi fonte de energia barata
nas últimas décadas para turbinar o crescimento econômico norte-americano. Mas
há muitas preocupações com o efeito que isso causa ao meio ambiente. A Escola
de Saúde Pública de Yale, uma universidade dos EUA, publicou um texto em março
de 2022 dizendo que o “fracking” usado “extensivamente aumentou
as preocupações sobre o impacto no meio ambiente e na saúde das pessoas”.
“O
processo requer grande volume de água, emite gases que provocam o efeito
estufa, como o metano, libera ar tóxico na atmosfera e produz barulho. Estudos
indicam que esse tipo de operação para extrair óleo e gás podem levar a perda
dos habitats de plantas e animais, declínio das espécies, disrupções
migratórias e degradação da terra. Estudos também demonstraram haver uma
associação entre os locais de extração de óleo e gás de xisto com gravidezes
malsucedidas, incidência de câncer, hospitalizações e episódios de asma”, diz
o texto da Yale University.
O
financiamento de um gasoduto que pretende transportar gás de xisto é hoje
contraditório para a agenda verde do BNDES, que tem sido uma das prioridades do
banco de fomento brasileiro nos últimos anos.
A
Argentina já tem neste momento cerca do dobro de gasodutos (veja o mapa ao final do texto) em
relação à malha instalada no Brasil. O país tem amplas reservas de gás natural
no pré-sal. O insumo não é explorado aqui justamente por causa da falta de
dutos para transportar o gás.
O
Brasil reinjeta cerca de metade do gás do pré-sal. Por ser
extraído de forma direta dos poços em alto mar, esse tipo de processo é muito
menos danoso ao meio ambiente do que o usado para extrair gás de xisto.
O
gasoduto de Vaca Muerta é um dos mais relevantes projetos de infraestrutura da
Argentina. O país pretende com isso exportar o insumo para países vizinhos,
sobretudo o Brasil, e aumentar a entrada de moeda forte no país.
O
presidente Alberto Fernández firmou um pacto energético com o Brasil (377 KB) em
novembro para cooperação nessa área. É dentro desse contexto que agora, com a chegada
de Lula ao Planalto, que o país vizinho passou a fazer lobby para receber o
financiamento do BNDES. Deu certo com o anúncio de Lula nesta 2ª feira (23.jan.2023), em
Buenos Aires.
O
1º trecho do gasoduto Néstor Kirchner deve ligar as províncias de Neuquén e
Buenos Aires. A obra deve ser concluída até junho de 2023. Com esse duto em
operação, a Argentina economizará US$ 2,2 bilhões por ano em importações de
energia e subsídios, disse a secretária Flavia Royón.
O
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, minimizou nesta 2ª feira (23.jan.2023) a
priorização do investimento brasileiro no gasoduto argentino ao argumentar que
o Brasil será, ao fim, beneficiário da exploração do gás do país vizinho.
O Poder360 perguntou
ao ministro da Fazenda se faria sentido financiar um gasoduto na Argentina e
não no Brasil, que tem gás natural farto no pré-sal e que é reinjetado nos
poços, pois não há dutos de transporte suficientes em território brasileiro.
Haddad não respondeu de maneira direta nem explicou por que um projeto de
gasodutos estatais na Argentina seria melhor do que algo semelhante no Brasil.
Eis
a sua resposta:
“Quando
vai explorar o gás, seja no Brasil ou no exterior, se o destino final é o
Brasil, como nos casos citados tanto no pré-sal quanto em Vaca Muerta, se o
destino é o Brasil, nós vamos comprar o gás. E esse gás é a garantia do próprio
investimento. Então, quando um financiamento vem, pode ser até externo, pode
ser eventualmente do BNDES, porque é tudo dolarizado. Esses projetos se
sustentam. É diferente de uma PPP, que tem que entrar com dinheiro público.
Nessa caso o financiamento pode ser brasileiro e pode ser de uma agência internacional,
cujo bem é uma commodity de preço dolarizado. Muda muito o quadro.”
Haddad,
no entanto, não explicou o motivo pelo qual o Brasil não poderia ampliar a
malha de gasodutos internamente.
“É
uma obra que vai abastecer o Brasil. E isso é completamente diferente de
financiar obra em outro país. Financiar uma estrada em um país da África,
financiar um porto em um país da América Central e financiar uma obra que vai
fornecer gás para o Brasil no lugar da Bolívia, é completamente diferente. E
haverá o sistema de garantias”, disse.
GASODUTOS
NO BRASIL
No
Brasil, a malha de gasodutos de transporte parou de crescer há quase 10 anos.
Desde 2013, houve aumento de só 1%. Os dados são da Abegás (Associação Brasileira das Empresas
Distribuidoras de Gás Canalizado). O Poder360 explicou nesta reportagem qual a situação atual do país.
Veja
no infográfico abaixo como a malha de gasodutos no Brasil se compara a
Argentina, EUA e Europa:
Fonte: Matéria publicada, originalmente, no poder 360.
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