(*) Autor: Domingos Pellegrini Júnior (Londrina, 23 de julho de 1949)
Ele
chegou à praça com uma marreta. Endireitou a estaca de uma muda de árvore e firmou batendo com a marreta.
Amarrou a muda na estaca e se afastou como para olhar uma obra de arte
Não
resisti a puxar conversa
-
O senhor é da prefeitura?
-
Não, sou da Alice, faz quarenta e dois anos. Minha mulher.
-
Ah... O senhor quem plantou essa muda?
-
Não, foi a prefeitura. Uma árvore velha caiu, plantaram essa nova de qualquer
jeito, mas eu adubei, botei essa estaca aí. Olha que beleza, já está toda
enfolhada. De tardezinha eu venho regar.
-
Então o senhor gosta de plantas.
-
De plantas, de bicho, até de gente eu gosto, filho.
-
Obrigado pela parte que me cabe...
Ele
sorriu, tirou um tesourão da cinta e começou a podar um arbusto.
-
O senhor é aposentado?
-
Não, sou desaposentado. Foi podando e explicando: Quando me aposentei, já tinha
visto muito colega aposentar e murchar, que nem árvore que você poda e rega com
ácido de bateria... Sabia que tem comerciante que rega árvore com ácido de bateria
pra matar, pra árvore não encobrir a
fachada da loja? É... aí fica com a loja torrando no sol!
Picotou
os galhos podados, formando um tapete de folhas em redor do arbusto.
-
É bom pra terra... tudo que sai da terra deve voltar pra terra... Mas então, eu
já tinha visto muito colega aposentar e murchar. Botando bermuda e chinelo e ficando em casa diante da
televisão. Ou indo ao boteco pra beber
cerveja, depois dormindo de tarde. Bundando e engordando... Até que acabaram com derrame ou enfarte, de não fazer
nada e ainda viver falando de doença.
Cortou
umas flores, fez um ramalhete:
-
Pra minha menina. A Alice. Ela é um ano mais velha que eu, mas fica uma menina
quando levo flor. Ela também é desaposentada. Ajuda na escola da nossa neta,
ensinando a merendeira a fazer doce com pouco açúcar e salgados com os restos
dos legumes que antes eram jogados fora. E ajuda na creche também, no hospital.
Ihh... A Alice vive ajudando todo mundo, por isso não precisa de ajuda, nem tem
tempo de pensar em doença.
Amarrou
o ramalhete com um ramo de grama, depositou com cuidado sobre um banco.
-
Pra aguar as mudas eu tenho que trazer o balde com água lá de casa. Fui à prefeitura pedir pra botarem uma torneira
aqui. Disseram que não, senão o povo ia beber água e deixar vazando. Falei pra
botarem uma torneira com grade e cadeado que eu cuidaria. Falaram que não. Eu
teria que ficar com o cadeado e então ia ser uma torneira pública com controle
particular, e não pode. Sorriu, olhando a praça.
-
Aí falei: então posso cuidar da praça, mas não posso cuidar de uma torneira?
Perguntaram, veja só, perguntaram se tenho autorização pra cuidar da praça!!! Nem falei mais nada. Vim
embora antes que me proibissem de cuidar
da praça... Ou antes que me fizessem preencher formulários em três vias com taxa e firma reconhecida, pra fazer o que
faço aqui desde que desaposentei... Tá
vendo aquele pinheiro fêmea ali? A Alice que plantou. Só tinha o pinheiro macho.
Agora o macho vai polinizar a fêmea e ela vai dar pinhões.
-
Eu nem sabia que existe pinheiro macho e pinheiro fêmea.
-
Eu também não sabia, filho. Ihh... aprendi tanta coisa cuidando dessa praça!
Hoje conheço os cantos dos passarinhos, as épocas de floração de cada planta, e
vejo a passagem das estações como se fosse um filme!
- Mas ela vai demorar pra dar pinhões, hein? - falei, olhando a pinheirinha ainda da nossa altura. Ele respondeu que não tinha pressa.
-
Nossa neta é criança e eu já falei pra ela que é ela quem vai colher os
pinhões. Sem a prefeitura saber ... e a Alice falou que, de cada pinha que ela
colher, deve plantar pelo menos um pinhão em algum lugar. Assim , no fim da
vida, ela vai ter plantado um pinheiral espalhado por aí. Sem a prefeitura
saber, é claro, senão podem criar um imposto pra quem planta árvores...
-
É admirável ver alguém com tanta idade e tanta esperança!
Ele
riu:
-
Se é admirável eu não sei, filho, sei que é gostoso. E agora, com licença, que
eu preciso pegar a Alice pra gente caminhar. Vida de desaposentado é assim: o
dinheiro é curto, mas o dia pode ser comprido, se a gente não perder tempo!
(*) é um jornalista, publicitário e escritor brasileiro, cuja obra compreende romances, contos, crônicas e poesia. É vencedor do Prêmio Jabuti em duas ocasiões.
Fonte: Artigo publicado no site caderno de mensagens.
Para
ler mais acesse, www: professortacianomedrado.com / Siga o blog do
professorTM/EJ no Facebook, e no Instagram. Ajude a aumentar a
nossa comunidade.
AVISO: Os comentários são de responsabilidade dos autores e não representam a opinião do Blog do professor Taciano Medrado. Qualquer reclamação ou reparação é de inteira responsabilidade do comentador. É vetada a postagem de conteúdos que violem a lei e/ ou direitos de terceiros. Comentários postados que não respeitem os critérios podem ser removidos sem prévia notificação.
Postar um comentário