Artigo publicado no site A Referência
Uma
guerra que não é chamada de… guerra. Na Rússia, é proibido chamar o
conflito em andamento na Ucrânia desde
24 de fevereiro pelo nome. No lugar, a imprensa teve que adotar um eufemismo
definido por Vladimir
Putin: “operação militar especial”. Não satisfeito, o presidente determinou
punições severas para os meios de comunicação que não seguirem uma linha
editorial estatal. São tempos de silenciamento ainda mais duro dos
profissionais de imprensa do país.
Estão
terminantemente proibidos quaisquer relatos de bombardeios russos a cidades
ucranianas e baixas civis, bem como textos que usem expressões como “ataque”,
“invasão” ou “declaração de guerra”. E jornalistas que não dançarem
conforme a “kalinka” (música folclórica local) podem ser expulsos do baile.
A
nova lei assinada no início de março impõe duras punições àqueles que
divulgarem notícias
sobre a guerra consideradas “falsas” pelo governo russo. A punição
àqueles que desrespeitarem a medida é de até dez anos de prisão. Em casos que a
Justiça considere terem gerado “consequências sérias”, a punição sobe para até
15 anos.
Porém,
a ferramenta de censura do Kremlin para reprimir a oposição e silenciar os
meios de comunicação não alinhados com o governo não alcança parte da mídia
independente, principalmente a que foi buscar refúgio fora do país. Contornando
a censura de várias maneiras, ela leva aos cidadãos russos acesso vital a fatos
sobre a guerra que não são relatados pela imprensa estatal, como a Channel
One, Rossiya 1, NTV – da gigante de energia Gazprom – e o canal de
notícias a cabo Rossiya 24.
Entre
os veículos “exilados” que mais condenam os atos do regime de Putin está
o Meduza, que abrange informações sobre todas as ex-repúblicas da extinta
União Soviética, detalha o site O
Bastidor. A publicação não acatou as regras nem mudou o tom quanto às ações
das tropas russas dentro do país vizinho. A atitude desafiadora ocorre pelo
fato de o veículo estar registrado na Letônia, fora do controle do
Estado russo.
Já
um dos tradicionais pilares de resistência da imprensa livre, o jornal Novaya
Gazeta jogou temporariamente a toalha e decidiu suspender as atividades.
Pelo menos até que as ofensivas em solo ucraniano cessem, segundo a direção.
Criado logo após a dissolução
da União Soviética, em 1991, a publicação foca em reportagens
investigativas e combativas à corrupção das elites russas e do Kremlin.
O
anúncio sobre a paralisação da versão doméstica veio do editor do jornal
independente, Dmitry
Muratov, vencedor do prêmio Nobel da Paz em outubro por “defender a
liberdade de expressão na Rússia sob
condições cada vez mais desafiadoras”. Em uma das suas edições derradeiras,
o Novaya Gazeta trouxe uma arte de capa com referências sombrias, que
mostrava a silhueta de bailarinos tendo ao fundo uma explosão em forma de
cogumelo (geralmente associada a explosões nucleares). A legenda foi, no
mínimo, corajosa: “Uma edição da Novaya concebida em conformidade com
todas as novas regras do código criminal da Rússia”.
À
rede Radio
Free Europe, Muratov justificou que suspendeu as operações após receber
avisos oficiais. Segundo ele, o jornal foi notificado duas vezes pelo Roskomnadzor,
órgão regulador de internet e dos meios
de comunicação, que pretendia fechá-lo por meio de ação judicial.
“Depois
disso, estamos interrompendo o lançamento do jornal no site, nas redes
(sociais) e no papel, até o final da “operação especial no território da
Ucrânia'”, disse o jornal em comunicado no dia 28 de março. A alternativa foi
lançar uma versão europeia, em russo e inglês, produzida fora da Rússia por
jornalistas exilados, que vai circular ao menos enquanto a edição doméstica
estiver parada.
‘Não
existe mais jornalismo na Rússia’
Em
entrevista à rede Voice
of America (VOA), a jornalista russa Nadezhda Prusenkova falou sobre a
atmosfera de trabalho no país.
“Trabalho
no Novaya Gazeta há bastante tempo e agora é provavelmente o momento
mais difícil de toda a história do jornal. A última edição que publicamos foi a
mais difícil de montar, tanto técnica quanto moralmente”, relatou a chefe de
imprensa do veículo.
Ela
também deu um panorama sobre a situação da categoria após a implementação da
nova lei de Putin sobre “fake news“.
“Quando
a lei sobre notícias falsas entrou em vigor, quase 30 meios de comunicação
foram bloqueados, fechados ou destruídos. O jornalismo se perdeu na Rússia.
Simplesmente não existe mais. Jornalismo independente, pelo menos”, lamentou.
Há
pouco mais de um ano, em março de 2021, a redação do jornal em Moscou foi alvo
de um suposto
ataque químico, ocorrido logo após o jornal notificar que três organizações
não-governamentais entraram com um processo contra a empresa de “segurança
privada” Wagner
Group, acusada de implantar mercenários na Síria.
Diversos
outros meios de comunicação russos também escolheram parar as prensas em vez de
enfrentar a mão-de-ferro da censura. Entre os que lacraram suas portas estão
veículos como Ekho Moskvy (Eco de Moscou) e a TV Rain,
conhecidos por serem vozes pró-independência em relação ao regime. O Kremlin
também bloqueou vários meios de comunicação estrangeiros.
A
censura não parece atingir uma fatia significativa da população russa, que
parece levar fé no governo e não estar preocupada com o contraponto e a verdade
factual trazida pelo jornalismo independente. Pesquisas estatais mostram que a
maioria dos russos – mais de 70% – apoia a “operação militar especial” do
Kremlin, segundo a rede NPR.
Para os analistas, isso é um reflexo da incapacidade do público em geral de
analisar a enxurrada de propaganda.
“A
maioria das pessoas não busca a verdade. Elas não vão em busca de fatos ou
verdade. Elas continuam com sua vida diária”, diz Sergey Radchenko, historiador
da Guerra Fria na Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade
Johns Hopkins. “Então, elas estão procurando subconscientemente algum tipo de
desculpa e compram essa narrativa que está sendo oferecida a eles”.
Mídias
sociais sitiadas
A censura
russa também repercutiu em bloqueio parcial do acesso ao Facebook, Twitter, Instagram e
a diversos outros sites informativos locais e estrangeiros no país. A ação é
mais um capítulo da repressão imposta por Moscou às vozes
dissonantes durante a guerra na Ucrânia.
O TikTok foi
outra plataforma que proibiu temporariamente os usuários na Rússia de enviarem
novos conteúdos.Já o YouTube e o aplicativo de mensagens Telegram,
bastante usados por fontes de propaganda estatal, ainda estão disponíveis e
são amplamente utilizados no país.
A
lei sobre “notícias falsas”, que entrou em vigor no dia de 4 de março, surgiu
após anos de crescente pressão do governo sobre os meios de comunicação,
enquanto pesquisas mostraram que a maioria dos russos (64%) recebe suas
notícias da televisão estatal.
As
lentes russas
A
visão de mundo mostrada pelos órgãos estatais russos é uma alternativa do
Kremlin às narrativas ocidentais, segundo artigo da rede NPR.
Nessa cosmovisão geopolítica particular, praticamente todos os eventos globais
são pautados pelos interesses russos: Putin é um peso-pesado político
inigualável na arena global, “e as nações do mundo rotineiramente procuram em
Moscou soluções para as crises internacionais mais prolongadas”, diz o texto.
Em
todas as redes, combatentes ucranianos são definidos como “terroristas” e “rebeldes”,
a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) é o “mestre ultramarino” da
Ucrânia e os foguetes russos atingem apenas alvos militares, enquanto as tropas
da ex-república soviética usam hospitais e prédios residenciais como cobertura.
Um
exemplo da cobertura russa pode ser visto no Vesti Nedeli, principal
programa dominical que aborda notícias da semana no canal Rossiya 1. O
jornalístico foi recentemente líder de audiência ao retratar as alegações de
Putin sobre sobre a ação de “nazistas ucranianos conduzindo uma campanha de
genocídio” na região de Donbass,
no leste da Ucrânia.
“Está
claro agora que, se nossas tropas não tivessem entrado, Donbass teria sido
varrida da face da Terra”, disse o apresentador Dmitry Kiselyov.
O
presidente dos EUA, Joe Biden, é figura cativa na mídia estatal russa. Um
popular talk show costuma reproduzir comentários anti-Biden feitos
pelo ex-presidente Donald Trump e pelo apresentador da Fox News Tucker
Carlson. Ambos citam, entre outras coisas, “pedidos crescentes” pelo
impeachment do líder norte-americano, dizendo que ele culpa a Rússia por seus
problemas domésticos.
Nesse
cenário, a mídia estatal russa entrou
na mira das nações ocidentais. A Alemanha lidera a
empreitada, após proibir
as transmissões do canal em alemão da emissora russa RT. Luxemburgo
seguiu o mesmo caminho, e a França abriu investigação
para avaliar o comportamento da empresa. Dois estudos atrelam a emissora, bem
como a agência estatal de notícias Sputnik, à inteligência da Rússia, liderando uma campanha de
desinformação focada não somente em fortalecer a imagem do Kremlin, mas também
em desestabilizar
governos alinhados com Washington.
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