ARTIGO: Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às relações jurídicas estabelecidas no âmbito de empreendimentos habitacionais promovidos por sociedades cooperativas

 


 Antonio Evengelista de Souza Netto, Juiz de Direito

Antonio Evengelista de Souza NettoPRO

O texto cuida da incidência do Código de Defesa do Consumidor nas relações jurídicas estabelecidas no âmbito de empreendimentos habitacionais desenvolvidos por cooperativas.

Em primeiro lugar, importa saber que, segundo a legislação, reputam-se instituições financeiras as pessoas jurídicas, públicas ou privadas, que exerçam, de forma principal ou acessória, atividade bancária[1].

Para tais fins, considera-se atividade bancária a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, além da custódia de valores de propriedade de terceiros.

Equiparam-se às instituições financeiras quaisquer pessoas que exerçam atividades dessa natureza, de forma permanente ou eventual.

Dentre essas pessoas estão a cooperativa de crédito, como se pode notar, por exemplo, da leitura do art. 18 da Lei nº 4.595/1964.[2]

Como se sabe, de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o Código de Defesa do Consumidor aplica-se aos contratos bancários firmados entre instituições financeiras e consumidores.

É correto dizer, por conseguinte, que as normas do Código de Defesa do Consumidor também se aplicam às relações jurídicas estabelecidas entre os cooperados e as cooperativas cujas atividades sejam equiparadas às das instituições financeiras.[3]O mesmo se diga com relação às empreendimentos habitacionais promovidos por cooperativas, que também reclamam a incidência do Código de Defesa do Consumidor.[4]

A aplicação das normas consumeristas aos negócios entabulados por cooperativas, diversamente do que se pode pensar, revela-se perfeitamente coerente com o nosso ordenamento jurídico.

Esta percepção é evidente ao se considerar que a Constituição Federal não só assegura apoio e estímulo ao cooperativismo (art. 174 da CF[5]) como também garante a proteção ao consumidor (art. 5º, XXXII; art. 150, § 5º; art. 170, V).

Repare, a propósito, que o art.  do Código de Defesa do Consumidor preceitua que suas normas objetivam a proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e do interesse social, nos termos do artigo , inciso XXXII[6], e do artigo 170, inciso V[7], da Constituição Federal, sem prejuízo do disposto no art. 48 de suas Disposições Transitórias.

Cooperativas de crédito.

As atividades desenvolvidas pelas cooperativas de crédito são reguladas pela Lei Complementar nº 130/2009, que cuida do Sistema Nacional de Crédito Cooperativo. Além das disposições da LC nº 130/2009, aplicam-se às cooperativas de crédito, no que não for incompatível com a sua natureza, as regras estabelecidas na Lei nº 4.595/64, na Lei nº 5.764/71 e no Código Civil.[8]

No âmbito infralegal, a Resolução nº 2.788/2000 do Conselho Monetário Nacional (CMN), antes da LC nº 130/2009 já havia permitido a criação de bancos cooperativos, com controle acionário de cooperativas centrais, com o fim de permitir acesso aos produtos e serviços bancários não disponíveis às cooperativas de crédito, a exemplo dos serviços prestados pelas câmaras de compensação de cheques, aos créditos oficiais, à reserva bancária e ao mercado interfinanceiro. Os bancos cooperativos, em linhas gerais, se subordinam às mesmas regras aplicadas aos bancos comerciais e aos bancos múltiplos em geral.

A Resolução nº 4.434/2015 do Conselho Monetário Nacional, reuniu as regras acerca da constituição e funcionamento das cooperativas de crédito.

Recentemente a Resolução nº 4.887/2021 do Conselho Monetário Nacional passou a dispor sobre a auditoria cooperativa das cooperativas singulares de crédito, das cooperativas centrais de crédito e das confederações de centrais. De acordo ela, essas entidades deverão passar por auditoria cooperativa, no mínimo uma vez por ano, a ser realizada por empresa de auditoria independente, com registro na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), ou por entidade de auditoria cooperativa, constituída como entidade cooperativa de terceiro nível, destinada exclusivamente à prestação de serviços de auditoria, integrada por cooperativas centrais de crédito, confederações de centrais ou pela combinação de ambas.

As cooperativas de crédito são formadas para prestação de serviços financeiros, por meio da mutualidade, aos seus próprios cooperados. Para realizar esses fins, essas cooperativas poderão se valer de todos os instrumentos necessários que estiverem disponíveis no mercado financeiro. Exceto no caso de operações com outras instituições financeiras ou com relação a recursos obtidos de pessoas jurídicas, em caráter eventual (sem remuneração ou com juros diferenciados), as cooperativas só poderão captar recursos, conceder créditos ou garantias aos seus próprios cooperados. Isso não impede que a cooperativa preste outros serviços financeiros a outras pessoas que não sejam associados. Nos termos da legislação, poderão ser disponibilizados recursos oficiais específicos às cooperativas de crédito para empréstimo ou financiamento das atividades de seus associados[9]. Apesar da remuneração dos serviços a atividade da cooperativa de crédito não visa o lucro. O objetivo principal das cooperativas de crédito é a prestação de serviços financeiros aos seus associados, com o fim de reduzir custos e aumentar os ganhos dos cooperados. A finalidade não é lucrativa, como aliás ocorre com as cooperativas, nos termos assinalados no art.  da Lei 5.764/71.

Ao definir a política nacional do cooperativismo, a Lei nº 5.764/1971 estabeleceu que as cooperativas podem ser constituídas como entidades singulares, como federações ou confederações. As cooperativas singulares, constituídas por no número mínimo de vinte cooperados, ordinariamente pessoas físicas, admitindo-se a participação de pessoas jurídicas, desde que sem fins lucrativos ou que desenvolvam atividades econômicas equivalentes às desenvolvidas pelas pessoas físicas. As federações de cooperativas, ou centrais, são formadas por no mínimo três cooperativas singulares. Por fim, as confederações de cooperativas centrais são formadas por no mínimo três federações de cooperativas (cooperativas centrais), de modalidades diferentes ou idênticas.

No âmbito do Sistema Nacional de Crédito Cooperativo (LC nº 130/2009), além das cooperativas singulares, também podem ser criadas cooperativas centrais de crédito, constituídas para organizar os serviços financeiros e de assistência, prestados pelas cooperativas singulares filiadas. As cooperativas centrais de crédito também organizam as atividades das filiadas, colaboram para a utilização recíproca de recursos e serviços, e auxiliam a supervisão. De modo distinto das cooperativas centrais de crédito, as federações de cooperativas de crédito não realizam operações restritas às instituições financeiras, como recebimento de depósitos ou concessão de financiamentos. As cooperativas centrais de crédito também serão aglutinadas para a formação de confederações, cujo principal objetivo é orientar, coordenar e auxiliar a execução de atividades que ultrapassem a capacidade operacional das entidades participantes.


[1] Com relação à insolvência não se esqueça que as instituições financeiras se submetem a procedimentos específicos de intervenção e liquidação extrajudicial, nos termos da lei nº 6.021/74 e do Decreto-Lei nº 2.231/87. Para o estudo detalhado deste tema, confira: SADII, Jairo. Regimes especiais de liquidação e intervenção extrajudicial nas instituições financeiras. Tratado de Direito Comercial. Fabio Ulhoa Coelho (coord.), volume 8: Títulos de Crédito, Direito Bancário, Agronegócio e Processo Empresarial. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 269 e segs. “A gênese do fenômeno financeiro se encontra no poder estatal de criação de moeda, ente abstrato destinado a viabilizar o fenômeno econômico, ou seja, como meio de troca e de troca e de pagamento, seja como medida de valor. [...] o crédito funciona como sucedâneo da moeda e acaba por criar uma segunda espécie de moeda, a moeda escritural, que só existe nos registros do ente concedente de crédito, mas que possibilita a multiplicação dos meios de pagamento. ” TURCZYN, Sidnei. Conceito e características gerais dos contratos bancários. Tratado de Direito Comercial. Fabio Ulhoa Coelho (coord.), volume 8: Títulos de Crédito, Direito Bancário, Agronegócio e Processo Empresarial. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p.164.

[2] Lei nº 4.595/1964: Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros. Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual. Art. 18. As instituições financeiras somente poderão funcionar no País mediante prévia autorização do Banco Central da República do Brasil ou decreto do Poder Executivo, quando forem estrangeiras. § 1º Além dos estabelecimentos bancários oficiais ou privados, das sociedades de crédito, financiamento e investimentos, das caixas econômicas e das cooperativas de crédito ou a seção de crédito das cooperativas que a tenham, também se subordinam às disposições e disciplina desta lei no que for aplicável, as bolsas de valores, companhias de seguros e de capitalização, as sociedades que efetuam distribuição de prêmios em imóveis, mercadorias ou dinheiro, mediante sorteio de títulos de sua emissão ou por qualquer forma, e as pessoas físicas ou jurídicas que exerçam, por conta própria ou de terceiros, atividade relacionada com a compra e venda de ações e outros quaisquer títulos, realizando nos mercados financeiros e de capitais operações ou serviços de natureza dos executados pelas instituições financeiras. § 2º O Banco Central da Republica do Brasil, no exercício da fiscalização que lhe compete, regulará as condições de concorrência entre instituições financeiras, coibindo-lhes os abusos com a aplicação da pena nos termos desta lei. § 3º Dependerão de prévia autorização do Banco Central da República do Brasil as campanhas destinadas à coleta de recursos do público, praticadas por pessoas físicas ou jurídicas abrangidas neste artigo, salvo para subscrição pública de ações, nos termos da lei das sociedades por acoes.

[3] O STJ definiu que “[...] A orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de se admitir a aplicação das disposições do Código de Defesa do Consumidor às relações travadas entre cooperados e cooperativas quando estas desenvolvem atividades equiparadas às instituições financeiras. AgInt nos EAREsp 1302248/PR, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 20/10/2020, DJe 29/10/2020. “[...] As normas de proteção aos direitos do consumidor são aplicáveis aos empreendimentos habitacionais promovidos pelas sociedades cooperativas, consoante o disposto na Súmula nº 602/STJ, havendo, portanto, responsabilidade solidária de todos os integrantes da cadeia produtiva ou de fornecimento do serviço, nos termos dos arts. parágrafo único14 e 34 do Código de Defesa do Consumidor. 3. Hipótese em que o tribunal de origem deixou assentado que a recorrente participou efetivamente da cadeia de fornecimento do bem, de modo que eventual conclusão em sentido contrário dependeria do reexame do contexto fático-probatório dos autos, procedimento vedado pela Súmula nº 7/STJ. 4. Agravo interno não provido.” (AgInt no AREsp 1581700/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/08/2020, DJe 13/08/2020).

[4] Além da Súmula nº 602 do STJ, a conclusão indicada se esboça nos seguintes julgados: AgInt no AREsp 1581700/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/08/2020, DJe 13/08/2020. AgInt no AREsp 1266376/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 30/05/2019, DJe 04/06/2019. REsp 1735004/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/06/2018, DJe 29/06/2018.

[5] Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. § 2º A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.

[6] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.

[7] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: V - defesa do consumidor.

[8] LC nº 130/2009: Art. 1º As instituições financeiras constituídas sob a forma de cooperativas de crédito submetem-se a esta Lei, bem como à legislação do Sistema Financeiro Nacional - SFN e das sociedades cooperativas. § 1º As competências legais do Conselho Monetário Nacional - CMN e do Banco Central do Brasil em relação às instituições financeiras aplicam-se às cooperativas de crédito. § 2º É vedada a constituição de cooperativa mista com seção de crédito.

[9] LC nº 130/2009: Art. 2º As cooperativas de crédito destinam-se, precipuamente, a prover, por meio da mutualidade, a prestação de serviços financeiros a seus associados, sendo-lhes assegurado o acesso aos instrumentos do mercado financeiro. § 1º A captação de recursos e a concessão de créditos e garantias devem ser restritas aos associados, ressalvadas as operações realizadas com outras instituições financeiras e os recursos obtidos de pessoas jurídicas, em caráter eventual, a taxas favorecidas ou isentos de remuneração. § 2º Ressalvado o disposto no § 1º deste artigo, é permitida a prestação de outros serviços de natureza financeira e afins a associados e a não associados. § 3º A concessão de créditos e garantias a integrantes de órgãos estatutários, assim como a pessoas físicas ou jurídicas que com eles mantenham relações de parentesco ou negócio, deve observar procedimentos de aprovação e controle idênticos aos dispensados às demais operações de crédito. § 4º A critério da assembléia geral, os procedimentos a que se refere o § 3º deste artigo podem ser mais rigorosos, cabendo-lhe, nesse caso, a definição dos tipos de relacionamento a serem considerados para aplicação dos referidos procedimentos. § 5º As cooperativas de crédito, nos termos da legislação específica, poderão ter acesso a recursos oficiais para o financiamento das atividades de seus associados.

* Juiz de Direito de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Pós-doutor em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutor em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2014). Mestre em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2008). Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM. Professor da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo - EMES. Professor da Escola da Magistratura do TJ/PR - EMAP.

Fonte: Artigo Extraido do site jusbrasill 

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