Rafael
Mallmann é sócio na área de Tributário do escritório TozziniFreire
Advogados.
Pedro Kulmann de Oliveira é advogado na área de Tributário do escritório TozziniFreire Advogados
Não é novidade que o Brasil é o país em que mais se gasta tempo (e dinheiro) para se pagar tributos. O cipoal legislativo editado pelos diferentes entes federados acaba por trazer um sem-número de deveres fiscais principais e acessórios. O seu descumprimento acarreta a aplicação de penalidades, algumas delas absolutamente desproporcionais às infrações cometidas.
Nesse
cenário, uma situação em especial vem causando transtornos aos contribuintes
de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
Trata-se da não escrituração de documentos fiscais de aquisição de mercadorias
no SPED/EFD e da presunção adotada pelo Fisco [1], em desfavor
do destinatário das operações, de que o seu procedimento está efetivamente
equivocado.
Como
é sabido, as operações de circulação de mercadorias realizadas dentro do
território nacional devem estar acobertadas pela emissão de documentos fiscais,
na forma prevista pela legislação tributária. Além disso, é obrigação das
partes envolvidas, se contribuintes do ICMS, a escrituração de tais documentos
em seus livros de entradas e saídas, dependendo da posição que ocupam na
relação negocial.
Em
situações normais, a obrigação de escriturar os documentos
fiscais — e os efeitos do não cumprimento dessa
obrigação — não gera maiores dúvidas. É inconteste a possibilidade de
aplicação de penalidade ao contribuinte infrator, sempre dentro dos parâmetros
de proporcionalidade e razoabilidade estabelecidos em nosso ordenamento
jurídico.
A
situação se altera, entretanto, quando o contribuinte deixa de escriturar um
documento fiscal por não ter conhecimento de uma operação da qual,
supostamente, teria participado. As Secretarias de Fazenda de alguns estados
brasileiros (Ceará, Pernambuco, Paraíba, Mato Grosso e Bahia são exemplos
disso) promovem o cruzamento de informações constantes de seus bancos de dados
e, não localizando a escrituração de documento fiscal por parte do
destinatário, presumem o cometimento da infração. Poderiam fazê-lo sem se
aprofundar nos motivos pelos quais a não escrituração ocorreu? A resposta, em
nosso entendimento, é negativa.
Há
diversas situações em que documentos fiscais são emitidos sem o conhecimento ou
concordância do destinatário. Um contribuinte de má-fé, por exemplo, pode
emitir documento fiscal como lastro de um título fraudulento. Outro, sem
qualquer má-fé, pode emitir equivocadamente documento fiscal de saída e lançar
um novo, desta feita de entrada, para anular os efeitos fiscais da operação. Um
terceiro, por sua vez, pode emitir nota fiscal em substituição a um primeiro
documento lançado de forma indevida, sem qualquer comunicação ao destinatário
sobre a existência de dois documentos relacionados a uma mesma operação.
Ao
ser autuado em razão da não escrituração de documentos que sequer deveriam ter
sido emitidos, o contribuinte se depara com uma situação absolutamente
esdrúxula. Os Fiscos estaduais invocam a presunção de legitimidade conferida ao
ato administrativo de lançamento e transferem ao contribuinte o ônus de dever
provar que não realizou as operações de circulação de mercadorias registradas
nos documentos que não escriturou. Como regra, apenas o fato de se exigir a
produção de uma prova negativa — a demonstração de que algo não
ocorreu — já haveria de ser suficiente para colocar à lona as
pretensões fazendárias. No entanto, não é essa a realidade que se tem observado
nos processos administrativos que tratam do tema.
Ignoram
os Fiscos estaduais que os contribuintes não podem persuadir os emitentes dos
documentos fiscais a apresentar qualquer informação sobre estes. Para provar
que uma nota fiscal foi emitida por engano, por exemplo, o contribuinte tem de
contar com a boa vontade de terceiros. Se isso não for possível, prevalecerá a
presunção de ocorrência de uma operação que jamais ocorreu.
Na
prática, o que se tem, sem qualquer respaldo legal ou constitucional, é a
destinação de um peso maior à informação prestada por um contribuinte em
detrimento da negativa apresentada por outro. É necessária a mínima prova da
ocorrência das operações, pois não se pode livremente presumir o extraordinário,
o ilícito e o indevido em desfavor de empresa que simplesmente não teve
qualquer participação na emissão da nota fiscal pelo terceiro.
Tudo
isso se dá, ainda, ao arrepio do artigo 142 do Código Tributário Nacional e de
sua expressa determinação para que a autoridade administrativa realize o "procedimento
administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação
correspondente". Não se precisa ir longe para concluir que tal regra
é absolutamente desconsiderada pelos Fiscos estaduais, que poderiam adotar
postura ativa, almejando descortinar a verdade real ao invés de simplesmente
imputar conduta ilícita ao contribuinte.
Vale
destacar que, atualmente, existe previsão para os destinatários contestarem
eventuais notas fiscais emitidas contra si e sem o seu conhecimento. Isso se dá
de forma eletrônica, por meio do programa eletrônico Manifesto do Destinatário,
em que o contribuinte pode confirmar ou não a ocorrência de determinada
operação comercial. Também é possível indicar ao Fisco caso se esteja diante de
operação completamente desconhecida e, portanto, inidônea.
Em
termos práticos, porém, os problemas não se resolvem. Em primeiro lugar, porque
não são todos os contribuintes que estão obrigados a adotar o Manifesto do
Destinatário [2], mas apenas
aqueles cuja atividade econômica está relacionada a operações com determinadas
mercadorias (combustíveis, óleos, bebidas e cigarros). Em segundo lugar, porque
empresas de médio e grande porte lidam com um volume elevado de documentos
fiscais emitidos contra si, o que torna impossível a utilização de sistema que
demanda a análise individualizada de cada um desses documentos para atestar se
as operações neles estampadas efetivamente ocorreram.
Muito
se fala, atualmente, do dever de colaboração existente na relação entre Fisco e
contribuinte. Essa é uma grande oportunidade para demonstração de que tal dever
é uma via de mão dupla. Do contrário, os contribuintes seguirão tendo de
recorrer ao Poder Judiciário para resolver situações que poderiam ser evitadas
com um pouco de boa vontade por parte das Fazendas estaduais.
[1] Sistema Público
de Escrituração Digital/Escrituração Fiscal Digital.
[2] Conforme Ajustes
SINIEF nºs 7/2005 e 5/2012, estão sujeitos ao Manifesto do Destinatário os
seguintes contribuintes: estabelecimentos distribuidores de combustíveis,
operações com combustíveis e lubrificantes, derivados ou não de petróleo;
postos de combustíveis e transportadores revendedores retalhistas, em relação
às NFes que acobertarem operações com combustíveis e lubrificantes, derivados
ou não de petróleo; estabelecimentos adquirentes de álcool para fins não
combustíveis; distribuidores ou atacadistas, que acobertarem operações com
cigarros, bebidas alcoólicas (inclusive cervejas e chopes), refrigerantes e
água mineral
Artigo publicado na Revista Consultor jurídico
Para ler mais acesse, www: professortacianomedrado.com
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