ARTIGO: A quem compete elaborar os regulamentos da Nova Lei de Licitações?

 



Por: Ana Luiza Jacoby Fernandes : consultora e advogada, mestranda e especialista em Direito Administrativo, integra a equipe de consultores em matéria de licitações e contratos do Instituto Protege.

Jorge Ulisses Jacoby Fernandes : professor, consultor, parecerista, escritor e advogado em temas afetos ao Direito Administrativo, mestre em Direito Público e consultor cadastrado no Banco Mundial, integra a equipe de consultores em matéria de licitações e contratos do Instituto Protege.

Dedicamos algumas linhas para tratar de um dos principais, se não o principal, tema da nova Lei de Licitações: a importância dos regulamentos. São mais de 38 temas que deverão ser objeto de regulamentação. Diante desse cenário importante esclarecer a quem compete elaborar o regulamento e se esse serviço pode ser terceirizado.

A natureza dos regulamentos e o artigo 84

A nova Lei de Licitações prevê a possibilidade de regulamentação de questões especificas e o faz em diversos dispositivos.

Importante destacar que nem toda lei é regulamentada. As leis autoexecutáveis não são passíveis de regulamentação. Para que o regulamento seja válido é preciso que haja, previamente, uma lei que comporte regulamentação.

Nosso ordenamento comporta o regime híbrido, como é o caso da Lei das Estatais (nº 13.303/2016), que possui dispositivos autoaplicáveis e dispositivos passiveis de regulamentação. Nessa mesma linha segue a lei de licitações.

A compreensão do termo "regulamento" faz se necessária para compreendermos a quem compete sua edição. Clèmerson Merlin Clève em obra de referência nos ensina que:

"O regulamento, em sentido lato, pode ser definido como qualquer ato normativo (geral e abstrato) emanado dos órgãos da Administração Pública. Em sentido estrito (que importa para o direito constitucional), regulamento será o ato normativo editado, privativamente, pelo chefe do Poder Executivo" [1].

Em sentido estrito, dispõe a Constituição Federal em seu artigo 84 que compete previamente ao presidente da República expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução [2].

Compatibilizando as disposições aos demais entes federados autônomos, o poder regulamentar em sentido estrito é exercido pelo Poder Executivo da União, dos estados e dos municípios e apenas caberia aos poderes executivos dos entes federados a regulamentação dos dispositivos da nova Lei de Licitações.

No entanto, o tema merece aprofundamentos.

Regulamentação orgânica

A nova Lei de Licitações não concebe a regulamentação em sentido estrito, mas, sim, em sentido amplo, ressalvados os casos expressos, vide comandos dos artigos 12, inciso VII, 26, §§2º e 3, 70, parágrafo único, 76, inciso II. artigos 87 e 184.

Em sentido amplo porque exige a regulamentação especifica interna corporis como depreende-se da leitura do artigo 8, §3º, que estabelece a necessidade de regulamento para dispor sobre a atuação do agente de contratação e da equipe de apoio, bem como ao funcionamento da comissão de contratação e à atuação de fiscais e gestores de contrato.

Nas lições de Geraldo Ataliba, regulamento é o conteúdo cuja função da regulamentação é facilitar a execução da lei [3], especificá-la de modo praticável e, sobretudo, acomodar o aparelho administrativo, para bem observá-la. O decreto seria uma forma de regulamentar [4].

Nesse sentido, o poder auto regulamentador encontra respaldo constitucional, na medida em que os Poderes Judiciário e Legislativo também gozam de autonomia administrativa.

A própria Lei nº 8.666/1993, também nessa mesma compreensão, dispõe em seu artigo 119 que as sociedades de economia mista, empresas e fundações públicas e demais entidades controladas direta ou indiretamente pelos entes federados editarão regulamentos próprios. Na mesma linha, o artigo 40 da Lei das Estatais determinou a regulamentação interna de licitações e contratos para empresas públicas e as sociedades de economia mista.

Por isso, defende-se que órgãos da Administração também podem regulamentar as matérias previstas na nova Lei de Licitações, ao qual denominamos de "regulamento orgânico". Inclusive, o artigo 19, §1º, dispõe textualmente acerca dessa permissão.

É claro que essa permissão há de limitar-se pela matéria a ser regulada que deve ficar nas estritas balizas colocadas pelo legislador. Assim, a pretexto de regulamentar, não poderia o órgão criar um cargo público, por exemplo as competências privativas dos entes federados hão de ser respeitadas. Além dessa limitação horizontal, pertinente à matéria, também há uma limitação vertical: se atos normativos superiores, compreendidos como os emanados da Constituição e das leis, e até regulamentos do Poder Executivo, dispuser sobre questão específica, não pode o órgão desse mesmo poder regular em sentido contrário.

Veja que os atos regulamentados nessa vertente são eminentemente interna corporis, porque cabe ao órgão ou entidade avaliar os custos e os benefícios decorrentes da implementação das práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo.

A norma não define quem é competente para aprovar o regulamento. Presume-se, na falta de previsão expressa, que não seja o agente de licitação, porque o agente de licitação também estará sujeito ao regulamento. Assim sendo, o documento deve ser aprovado por autoridade superior.

O regulamento unificado do artigo 188

Poderia se questionar, nessa senda, se as considerações aqui postas estariam em contrariedade com o artigo 188, que determina que "ao regulamentar o disposto nesta lei, os entes federativos editarão, preferencialmente, apenas um ato normativo?".

A resposta é negativa. As regulamentações interna corporis não comportam todas as dispositivos que demandam regulamentação pela nova lei. Como tivemos oportunidade de analisar, existem comandos que limitam os entes federados, o Executivo federal e os demais poderes. Além disso, existem matérias que também foram limitadas a esses. Por isso, compreende-se que o órgão vinculado não pode dispor em sentido contrário a regulamentação hierarquicamente superior que o abarca.

Portanto, repisa-se: o comando de unificação dos poderes regulamentares dos entes federativos não impede a regulamentação orgânica, desde que observe os balizamentos jurídicos pertinentes.

Uma questão operacional sobre esse dispositivo merece atenção: se por um lado uma das principais dificuldades dos que operam o Direito das licitações é a quantidade de normas esparsas que regulam partes do tema, e que a própria lei se propõe a ser um regime jurídico único na matéria, por outro a amplitude de temas que ensejam regulamentação, a exemplo de: agentes responsáveis pelo processo licitatório, fases internas da licitação, compras, obras e serviços de engenharia, sanções, programas de integridade, gestão de riscos e controle das contratações, entre outros, pode não ser, sob o viés didático, a melhor forma de se compreender os comandos normativos.

Perceba que a dimensão que a nova lei atribui aos regulamentos, demonstra que será exigido de órgãos e entidades da Administração Pública um profundo e vasto conhecimento das matérias afetas para uniformizar, processual e materialmente, os comportamentos a serem adotados em face dos critérios legais, em suma, o modus procedendi.

Cumpre salientar que, pelos comandos do artigo 187 desta lei, os estados, o Distrito Federal e os municípios poderão aplicar os regulamentos editados pela União para execução desta lei. A esse respeito, a União, por seus órgãos competentes já está se debruçando sobre o tema afim de regulamentá-lo o quanto antes na busca por facilitar a aplicação da lei.

Regulamentos: segurança jurídica e transparência

A edição de regulamento próprio para além da observância dos comandos legais é extremamente relevante e apropriada para assegurar a transparência e propiciar segurança jurídica.

Transparência porque, para que tenham eficácia e alcance a conduta externa, é necessária sua publicidade e ainda a necessidade de fazê-lo em linguagem clara e acessível à toda a sociedade interessada.

É também, com observância ao princípio da segurança jurídica, que os regulamentos asseguram certeza e previsibilidade na atuação estatal, o qual, inclusive, insere-se entre as boas práticas de governança corporativa, representando política de boa gestão, o que confere maior eficácia e confiabilidade na Administração. O regulamento pode definir critérios em todos os casos abertos pela lei ao poder discricionário. Com isso, o regulamento contribui com a segurança jurídica, facilita o processo decisório e internaliza os procedimentos que darão efetividade à lei.

Em perfeita consonância, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) dispõe em seu artigo 30 que, para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, um dos meios cabíveis é a edição de regulamentos.

Podem ser citados, ainda, muitos outros princípios, se não todos, dispostos no artigo 5º da nova lei, que podem ser instrumentalizados na edição do regulamento.

A possibilidade de contratação de regulamento

Questionamento relevante sobre o tema é se o órgão ou entidade pode contratar consultoria para auxiliar na elaboração de regulamento? A resposta é positiva.

Isso decorre da ausência, nos quadros da Administração Pública, de cargo ou função específica para esta atividade normativa. Aliás, na Lei das Estatais assistiu-se a criação de regulamentos contra a lei, como por exemplo os que incorporaram regras da Lei 8.666. Exemplo disso foram as cláusulas exorbitantes onde a nova lei determinou negociar ou impor a supremacia do interesse público.

Pelo princípio da segregação de funções, não é recomendável que quem elabore a norma também as execute. Outrossim, o profissional deve possuir experiência em elaboração de norma e ainda: nos temas objetos desta lei, que são muitos vastos, ser capaz de realizar diagnósticos e treinamento posteriores, mas, como integrante do quadro, não pode envolver-se efetivamente nas funções dispostas nessa lei.

Perceba que se tratam de competências muito peculiares atreladas a um dispêndio de tempo nem sempre possível para agentes integrantes do quadro. A teoria de constituir grupo de trabalho, sem prejuízo das funções, é uma utopia que se prolifera, embora consabidamente tenha resultados estéreis, improfícuos, quando não desastrosos.

Na terceirização dessa atividade a Administração ganha em:

a) Tempo: poupa seu quadro interno de servidores públicos que já possuem outras atividades;

b) Conhecimento: profissionais capacitados em elaboração de normas conseguem antever problemas habituais desses processos, especialmente identificados no diagnóstico;

c) Imersão: o profissional ou empresa especializada pode se ajustar aos prazos da Administração, bem como acompanhar as rotinas de modo a avaliar atribuições para formatar o funcionamento e a atuação dos agentes públicos que executaram a lei;

d) Experiências externas: os profissionais que detém experiência na área podem contribuir com as experiências e inovações de outros órgãos;

e) Governança: pode cobrar resultados sem considerar os eventos internos de reformulação de prioridades.

Não se coloca em contrapontos a existência de profissionais altamente capacitados para essa tarefa, integrantes da Administração Pública. O Ministério da Economia, por exemplo, possui equipe altamente qualificada e especializada no aperfeiçoamento e inovação da gestão, bem como na organização e no funcionamento da Administração Pública federal, mas não é essa a realidade de muitos órgãos e entidades de outras esferas de governo.

A melhor recomendação é que se imponham requisitos pertinentes à necessidade de o contratado conhecer a cultura do órgão e interagir com a equipe de profissionais que forem operar no futuro o regulamento. Que não se desperdice recursos com trabalhos de ctrl-c e ctrl-v, ou corta e cola. Que o regulamento desejado considere a estrutura do órgão, sua cultura e que os profissionais que validarão o objeto do contrato opinem nos textos produzidos. Necessária, também, uma avaliação de rotinas, antes e depois da implantação do regulamento para aferir os ganhos alcançados. Mais: que a implantação da norma seja sucedida de treinamento e que periodicamente sejam reavaliadas as normas e requalificados os servidores.

Além disso, a própria Lei de Licitações prevê sua aplicabilidade para os serviços técnicos especializados de natureza predominantemente em que  se enquadra perfeitamente a elaboração de regulamentos, que podem ser licitados ou, caso desempenhados por profissionais ou empresas de notória especialização, a licitação será inexigível. O serviço prestado por esse profissional, com base nos requisitos estabelecidos no dispositivo legal, pode ser suficiente para a contratação direta desse notório especialista por inexigibilidade de licitação na forma do artigo 74 as Lei de Licitações.

Também decorre de interpretação lógica do comando do artigo 8, §4º, que permite a contratação de serviço de empresa ou de profissional especializado para assessorar os agentes públicos responsáveis pela condução da licitação em caso de bens ou serviços especiais, cujo objeto não seja rotineiramente contratado pela Administração. É que esse dispositivo, em consonância com a doutrina e jurisprudência, visa a auxiliar a Administração quando esta não dispõe de profissional interno — se para uma licitação específica é permitido o auxílio profissional especializado, o que se poderia dizer da regulamentação de todos os tramites da licitação, internos e externos?

Por fim, o próprio Tribunal Contas da União (TCU) recomenda a formalização de normas para o serviço de licitações e contratos, de modo a identificar e registrar todas as atribuições e os procedimentos relacionados às contratações [5].

Para que a lei "cole", isto é, tenha efetividade, um regulamento bem elaborado mostra-se fundamental.

1] CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 2ª. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. P.277.

[2] Por força do paragrafo único do mesmo dispositivo O presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações.

[3] ATALIBA, Geraldo. Decreto Regulamentar no Sistema Brasileiro. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 1969. P.24.

[4] Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que o regulamento pode estabelecer regras orgânicas e processuais para órgãos e agentes administrativos, elucidar, com base em critérios técnicos, os fatos, as situações ou os comportamentos enunciados na lei de forma vaga, e, inclusive, explicar didaticamente o conteúdo da lei in MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo, Malheiros, 2019, p. 321.

[5] Acórdão nº 1.160/2013-TCU-Plenário. Para saber mais, consulte:

 

Fonte; Revista Consultor Jurídico

Para ler mais acesse, www: professortacianomedrado.com

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