Por Alexandre Vinicius Rodrigues de Moura Neri e Henryque Resende Luna
Recentemente, o Senado noticiou que aprovou nomes indicados pelo presidente da República para o conselho diretor da Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD). A referida agência é um órgão que recebeu tarefas essenciais para o bom funcionamento da Lei nº 13.709/2018, a chamada Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Uma dessas tarefas está disposta no artigo 55-J, inciso XVIII, da LGPD [1], que trata do tratamento simplificado e diferenciado para as microempresas e empresas de pequeno porte (MEPPs), visando a atender a uma garantia constitucional estabelecida nos artigos 170, IX, e 179 da Constituição Federal — CF/88 [2].
Por sua vez, o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (Lei Complementar nº 123/2006) trouxe ao ordenamento jurídico normas concretas para garantir o direito constitucional das MEPPs de terem o tratamento diferenciado e favorecido quanto às suas obrigações que forem instituídas por lei.
Nesse sentido, antes de continuarmos, é importante que se analise o teor dos parágrafos 3º, 4º, 5º e 6º do artigo 1º da referida LC nº 123/2006:
§3º.
Ressalvado o disposto no Capítulo IV, toda nova obrigação que atinja as microempresas e empresas de
pequeno porte deverá apresentar, no instrumento que a instituiu, especificação
do tratamento diferenciado, simplificado e favorecido para cumprimento.
§4º. Na especificação do tratamento
diferenciado, simplificado e favorecido de que trata o
§3º, deverá constar prazo máximo, quando forem
necessários procedimentos adicionais, para que os órgãos fiscalizadores cumpram
as medidas necessárias à emissão de documentos, realização de vistorias e
atendimento das demandas realizadas pelas microempresas e empresas de pequeno
porte com o objetivo de cumprir a nova obrigação.
§5º. Caso o
órgão fiscalizador descumpra os prazos estabelecidos na especificação do
tratamento diferenciado e favorecido, conforme o
disposto no §4º, a nova obrigação será inexigível até
que seja realizada visita para fiscalização orientadora e seja reiniciado o
prazo para regularização.
§6º. A ausência de especificação do tratamento diferenciado, simplificado e favorecido ou da determinação de prazos máximos, de acordo com os §§3º e 4º, tornará a nova obrigação inexigível para as microempresas e empresas de pequeno porte" (grifos dos autores).
Sendo assim, a respeito das novas obrigações que serão impostas pela LGPD às microempresas e empresas de pequeno porte, se faz necessário observar os preceitos da CF/88 e da LC nº 123/2006 no que diz respeito ao tratamento diferenciado, favorecido e simplificado.
Quanto ao aspecto da natureza das obrigações criadas pela LGPD, tem-se que se tratam de obrigações criadas por lei, com o objeto de cunho majoritariamente administrativo. Explica-se: a LGPD, além de impor as obrigações principiológicas que ditam o dever ser do tratamento dos dados pessoais, traz em seu bojo obrigações que são ações internas a serem realizadas pelos agentes de tratamento de dados.
Segundo a LGPD, as empresas devem responder por obrigações em relação ao usuário titular dos dados pessoais e também em relação ao poder público.
São exemplos dessas obrigações:
Artigo 8, §6º —
obrigação de informar ao titular qualquer alterações nos dados; artigo 9, §2º —
obrigação de informar ao titular sobre a mudança de finalidade para o
tratamento de dados;
Artigo
10, §2º — obrigação de adotar medidas para garantir transparência do tratamento
de dados baseado no legítimo interesse;
Artigo
14, §1º — obrigação de manter pública a informação sobre os tipos de dados
coletados a respeito de crianças e adolescentes; artigo 20,
§1º — obrigação de fornecer informações solicitadas sobre tratamento
automatizado de dados;
Artigo
37 — obrigação de manter registro dos dados tratados;
Artigo
41, caput e
§1º — obrigação de indicar encarregado para tratamento de dados — DPO — e
obrigação de manter públicas as informações de contato do DPO;
Artigo
46 — obrigação de adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas aptas
a proteger os dados pessoais;
Artigo
47 — obrigação de garantir a segurança da informação mesmo após o término do
tratamento dos dados;
Artigo
48 — obrigatoriedade de comunicar a ANPD e ao titular dos dados as
ocorrências de incidentes de segurança que acarretem risco ou dano aos
titulares;
Artigo 49 — obrigação de utilização de sistemas de tratamento de dados que atendam a requisitos de segurança.
No Artigo 55-J da LGPD, há uma total delegação à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), para edição de normas, orientações, procedimentos e prazos simplificados e diferenciados para que microempresas, empresas de pequeno porte e startups, se adequem à LGPD.
Essa situação exposta no artigo 55-J da LGPD parece conflitar com o disposto no artigo 1º, §3º, da LC 123/2006, visto que essa última norma impõe que a especificação do tratamento diferenciado, favorecido e simplificado para toda nova obrigação que atinja as MEPPs constem no documento que instituiu a obrigação.
Ainda, de acordo com o que consta na exposição de motivos da Emenda Substitutiva de Plenário nº 221/2012 [3], que acrescentou o §3º, ao artigo 1º da LC nº 123/2006, a intenção do legislador era claramente a de tornar obrigatória a previsão de tratamento diferenciado a toda nova obrigação que afete os pequenos empresários, sob pena de inexibilidade.
Essa norma veio para fazer valer as normas constitucionais já citadas anteriormente. No texto final promulgado, há a exigência de que o tratamento diferenciado, favorecido e simplificado seja especificado.
Como se pôde observar a LGPD traz inúmeras obrigações, porém, quando se tratou do tratamento diferenciado para MEPPs, não foi especificado como seria esse tratamento diante de tantas obrigações.
É importante mencionar também que o fato de a LGPD delegar à ANPD a criação de normas para tratamento diferenciado, favorecido e simplificado para MEPPs conflita com a disposição do §3º do artigo 1º da LC 123/2006, que dispõe que a especificação do tratamento para essas empresas deve estar no mesmo instrumento que instruiu as obrigações.
Se é a ANPD que editará normas de tratamento diferenciado, com certeza a especificação que menciona o artigo 1º, §3º, da LC 123/2006 não estará no mesmo instrumento que instituiu a obrigação.
Nesse sentido, é importante alertar que tais normas editadas pela ANPD poderão ser facilmente modificadas, visto que a ANPD atualmente está vinculada à Presidência da República (artigo 55-A, da LGPD).
Embora o artigo 55-B da LGPD assegure autonomia técnica e decisória à ANPD, o presidente da República ainda detém muito poder sobre a agência, eis que escolhe e nomeia o Conselho Diretor (artigo 55-D) e determina a sua estrutura regimental (artigo 55-G).
É possível questionar também se o conceito de autonomia técnica e decisória engloba a autonomia para produzir normas regulamentadoras.
Seguindo à risca as normas do estatuto das MEPPs, e conforme a lição de Mamede (2020, nº p.), é possível notar que a situação atual da LGPD, sem a especificação do tratamento diferenciado e favorecido a estas empresas implica em inexigibilidade das obrigações da LGPD para as MEPPs, pois, conforme o mencionado autor, se trata de violação de garantias legais ao exercício profissional.
"Ademais, a inobservância a todas essas regras resultará em atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional da atividade empresarial" (MAMEDE, 2020, nºp.) (grifo dos autores).
A alternativa que se busca a partir da análise da legislação supracitada, seria a especificação do tratamento diferenciado e favorecido para MEPPs no próprio texto da LGPD através de alteração legislativa própria.
Existe a possibilidade de, alternativamente, realizar a especificação do tratamento diferenciado às MEPPs por regulamento do Poder Executivo, através do ato do presidente da República previsto no artigo 84, caput, inciso IV, da Constituição Federal, tendo em vista se tratar de ato administrativo hierarquicamente superior a qualquer norma emitida pela ANPD.
Entretanto, qualquer método de regulamentar a lei que envolva deixar a especificação do tratamento diferenciado e favorecido às MEPPs, ao bel-prazer do Executivo, seja por meio de decreto regulamentar ou por meio de norma emitida pela ANPD, faz com que haja insegurança jurídica para o exercício profissional da microempresa e da empresa de pequeno porte.
Tanto as normas da ANPD quanto o decreto presidencial podem ser revogados a qualquer tempo por critérios de conveniência e oportunidade do Poder Executivo. Logo, essa modalidade de regulamentação é desaconselhável para realizar a especificação do tratamento favorecido, diferenciado e simplificado garantidos pela Constituição Federal e pela Lei Complementar 123/2006 às MEPPs.
Nesse contexto, pode-se afirmar que a LGPD ainda não está totalmente regulamentada e não atende ao princípio constitucional do tratamento favorecido, diferenciado e simplificado às MEPPs.
Essa hipótese traz, por consequência, a inexibilidade das novas obrigações da LGPD às microempresas e empresas de pequeno porte, por força do disposto no artigo 1º, §§ 3º a 7º da LC nº 123/2006 e artigos 170, IX, e 179 da Constituição Federal, enquanto perdurar a situação de ausência de especificação do tratamento diferenciado às MEPPs.
Ressalta-se, enfim, que a Lei Geral de Proteção de Dados é importantíssima e necessária para o desenvolvimento do Brasil. Contudo, deve sempre fazer o alerta de que a LGPD é uma legislação que foi feita às pressas, possui extrema influência de legislação estrangeira e pecou em detalhes importantes, como em relação às MEPPs por exemplo. Contudo, é uma lei com potencial para revolucionar o Direito brasileiro.
Referências bibliográficas
BRASIL. Lei
Complementar Nº 123, de 14 de dezembro de 2006. Institui o Estatuto Nacional da
Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte; altera dispositivos das Leis no
8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, da Consolidação das Leis do
Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, da
Lei no 10.189, de 14 de fevereiro de 2001, da Lei Complementar no 63, de 11 de
janeiro de 1990; e revoga as Leis no 9.317, de 5 de dezembro de 1996, e 9.841,
de 5 de outubro de 1999.. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm>.
Acesso em: 29/10/2020.
BRASIL. Lei nº
13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm>.
Acesso em: 29/10/2020.
MAMEDE, Gladston. Empresa e atuação empresarial. 12. ed. Editora Atlas. São Paulo — SP. 2020. Ebook. ISBN 978-85-97-02416-6.
[1] "Artigo
55-J — Compete à ANPD: […] XVIII. editar normas, orientações e procedimentos
simplificados e diferenciados, inclusive quanto aos prazos, para que
microempresas e empresas de pequeno porte, bem como iniciativas empresariais de
caráter incremental ou disruptivo que se autodeclarem startups ou empresas de inovação, possam
adequar-se a esta lei".
[2] "Artigo
170 — A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames
da justiça social, observados os seguintes princípios:[…] IX. tratamento
favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis
brasileiras e que tenham sua sede e administração no país. [...] Artigo 179 — A
União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios dispensarão às
microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei,
tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de
suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou
pela eliminação ou redução destas por meio de lei".
Para ler outras
matérias acesse, www: professortacianomedrado.com
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