ARTIGO: FEDERALISMO NA CRISE DA COVID-19 E EMENDAS CONSTITUCIONAIS ESTADUAIS

 


Por  e 

Dando continuidade às discussões sobre federalismo e direitos fundamentais que tenho feito aqui nesta ConJur (ver aqui [1] e aqui [2]), trago um terceiro tema importante do Direito Constitucional subnacional: o processo de alteração das Constituições estaduais no período da pandemia. Desta vez, escrevo com dois orientandos, Helder Oliveira (do doutorado) e Arthur Costa (IC da graduação), excelentes pesquisadores que me acompanham nas investigações sobre federalismo.

As discussões sobre o federalismo brasileiro como elemento de fortalecimento da cidadania em uma perspectiva progressista, de afirmação de direitos, são o nosso mote principal. A nossa proposta é a de pensar nas imensas possibilidades de fortalecimento da democracia e de direitos fundamentais a partir de processos de descentralização política.

Diversas pautas e reivindicações de grupos sociais podem ser instrumentalizadas no âmbito subnacional da construção de direitos por meio de parlamentares estaduais. Se, por um lado, mais descentralização não se traduz, necessariamente, em mais democracia, por outro lado não se pode deixar de considerar que a descentralização permite que organismos sociais se organizem para tentar interferir nos processos decisórios. Afinal, uma coisa é o poder central decidir para a periferia. Outra, diferente, é a própria periferia ter autonomia para tomar as suas decisões e, com isso, estando mais perto de quem será afetado por essas decisões, estar mais suscetível à sociedade local.


Nesse contexto se encontra a produção de emendas constitucionais à Constituição estadual. Há várias formas de se examinar esse tema. Emendas constitucionais estaduais podem ser produzidas a partir de motivações diversas. Vamos registrar aqui algumas possibilidades:

a) Alterações constitucionais federais podem exigir uma correção das normas constitucionais estaduais que se tornaram incompatíveis com a Carta Federal de forma superveniente;

b) Alterações constitucionais estaduais podem ser vistas como consequência da necessidade de adaptação da carta estadual à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal;

c) Alterações constitucionais estaduais podem ser decorrentes de uma esfera livre de atuação do constituinte derivado decorrente do Estado-membro, ampliando o espaço da Constituição estadual.

Há assuntos que devem estar na Constituição estadual, necessariamente? Se sim, quais seriam eles? Quando uma Assembleia Legislativa deve escolher elaborar uma emenda constitucional ou uma simples lei ordinária para legislar sobre um assunto?

Seja qual for a razão que tenha motivado a criação de uma emenda constitucional estadual, é importante dizer que não há, via de regra, um âmbito temático de assuntos que devem necessariamente estar na Constituição estadual. A decisão de constitucionalizar um tema na carta estadual é eminentemente política, de discricionariedade parlamentar. Pode-se mencionar algumas exceções a isso: nomeação de conselheiros de contas e desembargadores de tribunais de Justiça devem ser disciplinadas na Constituição estadual, de acordo com o que diz o artigo 235 da Constituição federal. A competência dos tribunais de Justiça deve igualmente estar prevista na Constituição estadual, de acordo com o que reza o artigo 125, §1º, da Constituição Federal. Assim, uma lei estadual não poderia disciplinar competência do tribunal de Justiça.

A ausência de regras sobre o que deve e o que não deve ser inserido na Constituição estadual faz com que a decisão seja, como dito, discricionária de cada Assembleia Legislativa. Vamos, então, examinar como foi o processo de alteração das Constituições estaduais em 2019 e 2020. O objetivo é verificar se os Legislativos estaduais diminuíram ou aumentaram a produção de normas Constitucionais estaduais (pesquisa quantitativa) e em quais temas (pesquisa qualitativa). A breve pesquisa teve por objetivo responder: a) qual foi o Estado que mais produziu norma constitucional estadual na pandemia em comparação com o ano anterior; e b) quais foram os temas mais legislados na pandemia.

Para responder as perguntas, realizamos uma breve pesquisa quantitativa e qualitativa que aqui passamos a apresentar. Obtivemos os dados a partir dos sítios eletrônicos das assembleias legislativas. No ano de 2019, foram produzidas 106 emendas constitucionais estaduais, enquanto no ano de 2020, foram produzidas 55 emendas. Verifica-se, portanto, uma redução quase à metade no período pandêmico até o dia 21 de outubro de 2020.  O Estado de Roraima foi quem mais produziu emendas em 2019, com nove emendas. Já em 2020, o "vencedor" foi o Estado de Mato Grosso, com sete emendas

É interessante observar algumas nuances desse processo de alteração. Em uma perspectiva quantitativa, dos 26 estados mais o Distrito Federal, quase todos eles caíram em número de emendas constitucionais. Apenas Bahia, Pernambuco, São Paulo, Santa Catarina e Mato Grosso aumentaram a produção de emendas em comparação com o ano anterior, com destaque para Mato Grosso, que saiu de três emendas em 2019 para sete em 2020.  Houve, ainda, três estados que mantiveram a mesma quantidade de emendas produzidas nos dois anos (Paraíba, Mato Grosso do Sul e Amapá).

Há uma sensível redução da atividade parlamentar no período pandêmico, salvo cinco estados que aumentaram e três que permaneceram com a mesma quantidade. Em regra, não há um desvio padrão significativo. O aumento ou diminuição de emendas não foi vertiginoso. Salvo algumas exceções, como o Distrito Federal, que produziu oito alterações em 2019 e caiu para apenas uma alteração em 2020 e o estado de Goiás, com sete emendas em 2019 e nenhuma em 2020. Nesses casos, é possível verificar uma diferença nas colunas que representam os anos de 2019 e de 2020. Os dados acima representam a análise das 106 emendas constitucionais estaduais produzidas entre os dois anos em foco para dar uma dimensão do ano pré-pandêmico e de como a atividade parlamentar foi afetada em razão da pandemia

Já em relação à análise qualitativa, passou-se a investigar os temas objeto de emendas. É possível verificar que algumas emendas estaduais foram produzidas como uma consequência de outra alteração constitucional federal. Cito aqui o caso da Emenda Constitucional Federal nº 104 que alterou o inciso XIV do caput do artigo 21, o §4º do artigo 32 e o artigo 144 da Constituição Federal para criar as polícias penais federal, estaduais e distrital. Houve um efeito cascata no plano subnacional, já que diversas assembleias legislativas também alteraram as suas constituições estaduais para se adaptarem à nova redação da Constituição Federal. Esse é o caso, por exemplo, das emendas nºs 40, de Alagoas, e 61, do Amapá (ambas de 2020). Na mesma toada se vê a Emenda nº 78 do Estado do Pará, que "adequa normas relativas ao Poder Judiciário, ao Ministério Público e à Defensoria Pública à Constituição Federal".

Houve, também, emendas constitucionais estaduais sendo elaboradas para se adaptarem à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Cito aqui a Emenda nº 82 à Constituição do Estado do Maranhão, de 2019, que permitiu iniciativa popular no processo legislativo de emendas constitucionais. O Supremo Tribunal Federal já havia decidido que as constituições estaduais podem ampliar a participação popular no processo legislativo [3].  

Todas as 161 emendas constitucionais examinadas foram agrupadas a partir dos temas envolvidos em nove classes. Emendas que criavam fundos, recursos ou traziam normas sobre diretrizes orçamentárias ficaram no primeiro grupo intitulado "orçamento público". Emendas que traziam normas sobre servidores públicos ou qualquer outro assunto relacionado à administração foram agrupadas na classe "Administração Pública". Emendas que promoviam direitos fundamentais assim foram classificadas em um terceiro grupo. Já um quarto grupo reuniu emendas que revogavam emendas ou de consolidação de constituições. Um quinto grupo reuniu emendas que versam sobre a organização dos Legislativos estaduais. Emendas pertinentes à atribuição de novas competências legislativas às assembleias e competências comuns aos estados e municípios foram listadas em um sexto grupo. Em um sétimo grupo, emendas que tocam temas referentes a questões imobiliárias e cartoriais. Um oitavo grupo reuniu emendas sobre serviços públicos (como, por exemplo, o de gás canalizado). Ao final, o nono agrupamento é de emendas sobre a Corte de Contas. Em uma análise comparada contendo os dois anos em destaque, 2019 e 2020, é possível identificar os assuntos mais abordados.

Do exame qualitativo da coleta, é possível identificar que nenhum assunto foi mais legislado no período pandêmico do que no período anterior ao da pandemia. Ou seja, não há assuntos não abordados em 2019 e que passaram a ser legislados em 2020. A diferença é de proporcionalidade na diminuição do volume. Por exemplo, verificou-se que na pandemia houve uma redução maior na produção de emendas sobre competências legislativas do que propriamente as emendas sobre direitos fundamentais

Algumas nuances também podem ser realizadas sob a perspectiva qualitativa, examinando os dados coletados. Uma delas é a identificação de emendas que foram construídas a partir de situações conjunturais. É o caso da greve dos policiais no Ceará, amplamente noticiada na imprensa. A emenda nº 99 à Constituição do Ceará estabeleceu vedação de concessão de anistia a policiais envolvidos em "movimentos antijurídicos". Tornar isso uma norma com rigidez constitucional é colocar o tema longe da disponibilidade de negociação da chefia do Executivo.

Outras emendas foram produzidas para reorganizar a própria Constituição estadual. Essas foram classificadas como "reorganização normativa", pois eram emendas que revogavam textos ou de consolidação da Constituição estadual. Exemplos: Emenda nº 44, de 2019, do Estado da Paraíba, e a nº 66, de 2019, do Estado de Roraima, uma emenda revogadora de outra ementa.

Não ficou evidenciado que houve produção significativa de emendas constitucionais com algum tipo de relação à pandemia. Uma exceção a isso pode ser visto na Emenda nº 77 à Constituição do Estado de Santa Catarina que, em razão da pandemia da Covid-19, estabeleceu "prazo para as respostas a pedidos de informação encaminhados pela assembleia legislativa, relativos ao acompanhamento da situação fiscal e da execução orçamentária e financeira de medidas relacionadas ao enfrentamento da pandemia". Insere-se no quesito "transparência", que pode ser compreendido como um direito fundamental à Administração Púbica transparente e proba. Já a Emenda nº 119, de 2020, do Estado do Amazonas, a Emenda nº 70, do Estado de Roraima, e a nº 81, do Estado do Pará, podem ser relacionadas à  motivação "pandemia", pois versam sobre distribuição de recursos públicos no período de emergência e sobre votações pela via online remota na assembleia. 

Também é possível perceber que, durante a pandemia, o assunto mais abordado foi aquele referente a temas da Administração Pública estadual (normas sobre servidores, regime de previdência, criação de cargos são exemplos desses temas, agrupados sob a classe de "Administração Pública"), com um total de 25 emendas constitucionais. Esse também foi o tema mais abordado em emendas constitucionais no ano de 2019, com 35 emendas. É verdade que muitas dessas normas não precisariam estar, necessariamente, inseridas no texto constitucional estadual. Não há qualquer mandamento constitucional federal, por exemplo, que assim determine. Isso não pode servir, todavia, para corroborar a tese da desimportância das constituições estaduais. Há diversas outras emendas constitucionais estaduais que foram produzidas e estão no coração dos assuntos referentes ao constitucionalismo subnacional, notadamente as que abordam temáticas de direitos fundamentais estaduais. Cito aqui a emenda nº 52 à Constituição do Estado de Pernambuco, de 2020, que incluiu na competência comum do Estado e dos municípios o combate à discriminação e ao preconceito de raça, cor, etnia, sexo, idade e religião. Também nesse tema (direitos fundamentais estaduais), inserem-se emendas que criam diretrizes para políticas públicas de amparo a moradores de rua, tal qual a Emenda nº 51, de 2020, de Pernambuco, ou que ampliam a participação popular no processo legislativo (iniciativa popular), como a Emenda nº 82, de 2020, do Maranhão.

Ao fim, pode-se dizer que, sob a perspectiva da produção de emendas constitucionais estaduais, a pandemia: a) reduziu a atividade parlamentar; e b) não gerou a produção significativa de novas temáticas nas emendas constitucionais. Todavia, apesar de uma aparente uniformidade do tipo de mudança constitucional estadual em relação a temas como, por exemplo, orçamento e Administração Pública, há um espaço a ser ocupado com outros temas referentes a direitos fundamentais que deve, se bem explorado, servir como reforço ao exercício da cidadania.

1] https://www.conjur.com.br/2020-jul-23/marcelo-labanca-direitos-fundamentais-estaduais-federalismo

[2] https://www.conjur.com.br/2020-out-01/opiniao-competencia-estadual-legalizacao-aborto#author.

[3] Ver ADI 825/AP, da relatoria do ministro Alexandre de Moraes. Ver http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=393827. Acesso em 22 de outubro de 2020.

Marcelo Labanca Corrêa de Araújo é professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco e pesquisador do Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC).

Helder Oliveira é professor de Direito Constitucional da Uniaeso e de Direito Administrativo da Faculdade Nova Roma (FGV), doutorando em Direito da Universidade Católica de Pernambuco e pesquisador do Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC).

Arthur Costa Brito é acadêmico de Direito da Universidade Católica de Pernambuco e pesquisador do Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC).

 

 Fonte: Revista consultor Jurídico


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