Quem paga pela desinformação e quem lucra com
ela? Há uma complexidade de fatores que precisamos analisar para identificar o
financiamento de condutas maliciosas e canais de desinformação nas redes
sociais e como tornar menos lucrativo o uso da desinformação como modelo de
negócio de canais das redes sociais.
As mentiras, as manipulações e as falsidades na política e na mídia não
são algo inédito. A grande novidade não é a desonestidade das narrativas, mas a
resposta do público a isso. A escola de economia comportamental nos dá alguns
sinais sobre esse movimento. Basicamente as pessoas decidem primeiro e depois
arrumam argumentos que justifiquem essas decisões.
Como cita Mathew D'Ancona em seu livro "Pós-Verdade", o truque
é propiciar entretenimento disruptivo como distração da ciência
incompreensível, como vimos acontecer com o tema da pandemia. As campanhas de
desinformação preparam e aprofundam terreno para a pós verdade e criam um
permanente clima conspirativo. A pós-verdade vende e o financiamento desse modus
operandi pode se dar de algumas formas. Citaremos três.
A primeira é o autofinanciamento, a mais grave e talvez mais
irrastreável. A experiência da extrema direita aponta para a formação de uma
rede em que as pessoas se sentem incluídas no processo político, se sentem
atores ativos, e não passivos, no ecossistema conspirativo. Essa rede atua
também de forma autônoma, horizontal e autofinanciada. E esse debate é
relevante quando tratamos de financiamento justamente porque a compressão
unilateral de uma existência verticalizada nos leva a respostas enviesadas e
inócuas. A convocatória para esse modus operandi trabalha com
o sentimento de que há poderosos a serem combatidos e os indivíduos, que antes
não faziam parte desse cenário, podem atuar nessa "guerra contra o
inimigo".
Essa convocatória é feita de forma assertiva e com muitas técnicas de
marketing digital e venda de infoprodutos. Na prática, muitos cursos, livros e
capacitações são vendidos e a partir deles temos uma formação de uma espécie de
exército de comunicadores. Além, é claro, dos anúncios como forma prioritária
de monetização.
A formação desses comunicadores é exponencial, uma vez que esses acabam
por ter dois problemas resolvidos. O primeiro é a rentabilidade. A
possibilidade de criar conteúdo extremista e ser remunerado por isso via adsenses do
Google em seus sites ou canais do Youtube. O segundo é a
possibilidade de chamar a atenção de atores políticos relevantes. E aqui temos
um outro mecanismo que estimula a radicalização. Quanto mais ódio e
surrealismo, maior engajamento e, portanto, maiores ganhos e
exposição/repercussão. Assim o mercado digital funciona. Como um ciclo vicioso,
primeiro são captados os leads (possíveis "clientes/usuários/consumidores"),
especialmente por meio do Facebook Ads, que permite melhor
segmentação e anúncios mais assertivos.
Depois, são chamados para redes próprias, tanto os sites próprios,
quanto os canais de YouTube. E, posteriormente, a conversão
via WhatsApp. Aqui vale destacar que mesmo os estudos menos promissores
falam de 75% de retorno nessa mídia. Ou seja, as pessoas vão consumir o
conteúdo compartilhado no WhatsApp. Dessa forma, fechamos o ciclo
de capturar, manter e nutrir uma base de leads.
Nesse ambiente, as análises realizadas por pesquisadores como David
Nemer, do Departamento de Estudos de Mídia na Universidade da Virgínia (EUA),
demonstram um contínuo submundo com grupos de pornografia, compra e venda,
armas etc. Não é preciso, necessariamente, ter uma base própria, apenas uma
forma efetiva de construção de influenciadores.
Assim, não necessariamente deveríamos seguir o dinheiro, mas cortar a
sua fonte: os anúncios e a monetização. Em paralelo, com mais transparência das
plataformas sobre os anunciantes, podemos também identificar financiamento empresarial.
A segunda forma de financiamento da pós-verdade é por meio de
plataformas de financiamento coletivo, o crowndfunding.
Nessa modalidade, é possível financiar de forma anônima e, caso sejam
feitas em paraísos fiscais ou com criptomoedas, o rastreamento é complexo. Aqui
vale destacar a experiência interessante de cadastramento feita pelo TSE para
autorização das plataformas de financiamento coletivo aptas a prestarem esses
serviços nas eleições, com cruzamento de dados que permitem a fiscalização da
Justiça Eleitoral.
E a terceira forma é o uso de agências de guerrilha e de milícias
virtuais. Esse mecanismo tem sido bastante explorado na CPMI das Fake News e é
mais popular. É importante dizer que essas relações interagem entre si e não
são ecossistema homogêneo com interesses apenas comuns. É possível dizer que,
na prática, não temos análise precisa do quanto a desinformação é
centralizada/financiada e o quanto é orgânica. Os monitoramentos indicam a
existência de um ambiente misto, que é alimentado da produção descentralizada,
mas que consegue pautar de forma centralizada alguns temas.
Com essa compreensão mais global dos diversos funcionamentos é possível
dizer que, para identificar o financiamento da desinformação nas redes sociais,
não é preciso apenas "seguir o dinheiro", sem entender quem pratica a
desinformação, ou que é possível sufocar sua fonte com transparência na
monetização e no uso da mídia programática.
Para concluir essa abordagem, vale mencionar o estudo feito pelo NetLab,
da UFRJ, coordenado pela professora Marie Santini, sobre o impacto de
iniciativas como o Sleeping Giants. A atuação do movimento Sleeping
Giants sugere a seguinte estratégia:
1) monitoramento e acompanhamento de sites que disseminam conteúdo
falso e que foram checados;
2) seleção dos sites com maior audiência;
3) convocação da colaboração dos usuários;
4) convidar publicamente os anunciantes associados pelos usuários ao
conteúdo falso dos sites a se manifestarem.
O fenômeno estudado indica que houve uma polarização dos bots contra
as marcas no Twitter, criando uma intimidação real contra os
anunciantes, porém essa polarização foi inflada artificialmente com ajuda de
uma rede orquestrada de bots e trolls. Importante
dizer que em uma análise realizada foram identificados mais de 18 mil sites com
características de baixa qualidade informacional e desinformação.
Há estimativas de retirada de quase US$ 1 milhão em publicidade desses
mecanismos com essa atuação, ressaltando que não é um mecanismo neutro e, como
tudo, deve ser avaliado com o devido cuidado e proteção das liberdades.
Feita a primeira análise de como identificar o financiamento da
desinformação, passamos agora à análise de como tornar menos lucrativo o uso da
desinformação como modelo de negócio de canais das redes sociais.
Neste ponto temos de separar a comunicação interpessoal da comunicação
de massa e viralizável, nos aplicativos de mensageria privada, mas,
principalmente, no WhatsApp.
A exposição de técnicas de profiling e a prestação de contas
sobre o uso de dados pessoais caracteriza-se como elemento-chave desse fenômeno
complexo que é a desinformação.
Mecanismos como oferecer ao usuário a opção de definir se cada mensagem
pode ou não ser reencaminhada, bem parecido com o que o Facebook permite
— público/amigos/amigos dos amigos, ou mesmo um tratamento distinto para grupos
que possuam link público são alternativas interessantes que requerem mais
atenção pelo seu potencial de contribuição no avanço da discussão. É o que
professores Pablo Ortellado e João Brant têm defendido.
Na internet as opiniões tendem a ser reforçadas e as mentiras,
incontestadas dentro dos filtro-bolhas e isso poderia ser confrontado com uma
abordagem mais incisiva de proteção de dados.
O atual modelo de negócio de diversos sites oferece conteúdo
gratuito em troca dos dados pessoais. Os termos de consentimento e as condições
de uso são do tipo tudo ou nada: ou aceita passar seus dados pessoais para
tratamento das empresas ou não usam o serviço disponibilizado.
Como exemplo de mediação dessas situações, visando a proteger os
cidadãos no caso de campanhas político-eleitorais, são estabelecidas
obrigações de transparência sobre compra de mídia e contratação de ferramentas
de marketing digital, e a vedação ao emprego de ferramentas automatizadas que
distorçam a percepção sobre o debate público. Essa pode ser uma medida
regulatória.
Nesse sentido, a própria Lei Geral de Proteção de Dados pode oferecer
caminhos para coibir comportamentos inautênticos que se valham do uso e análise
de dados pessoais ao definir hipóteses e regras para o tratamento de dados
pessoais, estabelecendo mecanismos de fiscalização e sanções no caso de
violação.
Assim, para coibir a desinformação, importa que a sociedade e as
instituições estejam a par de quem faz parte e qual é a lógica do ecossistema
informacional, qual o aporte financeiro é desembolsado nos diferentes tipos de
mensagem, a partir de qual base de dados esses atores elaboraram suas
estratégias, quais métodos de perfilização comportamental são utilizados e como
estes serviram para elaborar e direcionar determinada mensagem a determinado
grupo.
É esse tipo de clareza que permite à generalidade da população, que é a
vítima, e não agente da desinformação, conduzir um juízo de valor próprio sobre
as informações que lhe
são dirigidas.
Fonte: Artigo publicado na Revista consultor Jurídico do dia 14 de setembro de 2002, as 15h14
Para ler outras matérias acesse, www: professortacianomedrado.com
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