Por: Guilherme
Francisco Souza Perez acadêmico de Direito pela Universidade de
Cuiabá (Unic) e co-fundador do Perfil Jurídico Direitistas.
Que a pandemia da Covid-19 trouxe, além de
uma gigantesca crise sanitária, uma preocupante crise jurídica, isso é inegável
e já aceito pela doutrina. Não só o Brasil, mas, como também, o resto do
mundo não esperava por uma pandemia de tamanha magnitude. Isso fez com
que os países tivessem que adotar diversas medidas para conter o
alastramento do vírus, medidas essas que, em muitos casos, tiveram de ser
adotadas mediante a criação de novas normas para regular tal momento
extraordinário.
No Brasil não foi diferente, desde
novas normas trabalhistas até emenda à Constituição Federal tiveram
de ser aprovadas. A tratada no presente artigo é a EC 107/2020, que prevê
a alteração, excepcional, das datas em que serão realizadas as eleições
municipais, previstas até então para o mês de outubro, conforme a previsão
constitucional do artigo 29, I e II. Medida essa que, tomada pelo Poder
Legislativo federal, deve ser louvada, pois demonstra clara preocupação
com a manutenção da democracia e a continuidade do combate à pandemia.
Inclusive, pois, não prorroga o mandato dos atuais eleitos, o que pode vir a
ser discutido em um momento futuro dependendo da situação sanitária em que se
encontrar o país ou alguns municípios.
Antes de nos aprofundarmos no tópico
frasal, há de se louvar outra medida implementada pela referida EC, sendo
ela a possibilidade de um novo adiamento, porém, desta vez, não mais por
meio da promulgação de uma emenda constitucional, o que não seria viável devido
ao rigoroso trâmite. Conforme dispõe o artigo 1º, §4º, que trata da
possibilidade de um novo adiamento:
"§4º. No caso de as condições
sanitárias de um Estado ou Município não permitirem a realização das eleições
nas datas previstas no caput deste artigo, o Congresso Nacional, por provocação
do Tribunal Superior Eleitoral, instruída com manifestação da autoridade
sanitária nacional, e após parecer da Comissão Mista de que trata o artigo 2º do
Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, poderá editar decreto
legislativo a fim de designar novas datas para a realização do pleito,
observada como data-limite o dia 27 de dezembro de 2020, e caberá ao Tribunal
Superior Eleitoral dispor sobre as medidas necessárias à conclusão do processo
eleitoral".
Criou-se base legal para o
adiamento via decreto legislativo após provocação do Tribunal Superior
Eleitoral, o que agilizará a tomada da medida, se necessária.
Porém, a problemática principal, se
dá em face do artigo 2º da referida EC, que dispõe do seguinte texto:
"Artigo 2º — Não
se aplica o artigo 16 da Constituição Federal ao disposto nesta Emenda
Constitucional'.
Visando ao melhor entendimento da
tese aqui apresentada, segue o texto do artigo 16/CF:
"Artigo 16 — A lei que
alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se
aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência".
Tendo noção agora do real problema,
surge o questionamento: pode uma emenda constitucional afastar a aplicação
de um artigo da Lei Maior?
Tratando do caso específico,
interessante ressaltar que a EC 107/2020 não alterou o texto de
nenhuma norma constitucional, e ainda determinou que o adiamento será das
eleições de 2020, ou seja, findado o referido pleito, tal norma terá sua
eficácia exaurida.
Com base no que foi dito, por toda a
questão de legalidade extraordinária, e por saber que a norma terá sua eficácia
esgotada, repete-se a pergunta: pode uma emenda constitucional afastar a
aplicação de um artigo da Lei Maior?
Há de se entender que tal adiamento é
a única solução para o momento, caso contrário, seria necessário a prorrogação
do mandato de prefeitos, vice-prefeitos e vereadores para cinco anos, o que
dificilmente seria aceito como algo extraordinário e ensejaria em massivos
pedidos para a prorrogação definitiva. O que entendo como um retrocesso.
Entretanto, mesmo nos valendo de um momento totalmente fora dos padrões, não
pode a Corte Suprema, em hipótese alguma, admitir uma possível aplicação
inconstitucional de uma norma por ser esta a "única" saída. Se
tal afastamento viola o princípio da anterioridade da lei eleitoral,
resta, infelizmente, a declaração de sua inconstitucionalidade e a não
aplicação da EC 107/2020 na próxima eleição, todavia, seguimos adiante abrindo
pensamento para uma possível reversão desta situação.
Em face de toda a modernidade
tecnológica, poderia ser proposto a realização das eleições de maneira virtual
e continuadamente obrigatória, contudo, tal tese "cai pelo
chão" ao compararmos com a plataforma do Sistema de Seleção Unificada
(SiSU), também mantida pelo governo, que não suporta a elevada demanda de
estudantes, e majoritariamente eles, que acessam simultaneamente para concorrer
a uma vaga em uma universidade federal, que dirá uma plataforma
digital para suportar mais de 200 milhões de pessoas simultaneamente.
Tratando-se inclusive do próprio STF,
há dois entendimentos que podem ser usados no referido caso, o firmado na ADI
3.685, de relatoria da ministra Ellen Gracie, em que se julgou "...
para dar interpretação conforme no sentido de que a inovação trazida no artigo
1º da EC 52/2006 somente seja aplicada após decorrido um ano da data de sua
vigência"; e o outro é o apresentado na ADI
3.345, de relatoria do ministro Celso de Mello, em que se tratava da Resolução
do TSE 21.702/2004, ação essa que foi julgada improcedente nos termos em
que a resolução "... não ofendeu a cláusula constitucional da
anterioridade eleitoral (...), seja porque não produziu qualquer deformação
descaracterizadora da normalidade das eleições municipais, seja porque não
introduziu qualquer fator de perturbação nesse pleito eleitoral, seja, ainda,
porque não foi editada nem motivada por qualquer propósito casuístico ou
discriminatório".
Até o dia da produção do presente
artigo, 13 de julho, não foi ajuizado nenhuma ferramenta de controle
concentrado perante o STF, contudo, seria de extrema relevância jurídica o
posicionamento da corte, visto a legalidade extraordinária vivida pelo país, e
pelo resto do mundo, fazendo uma possível interpretação, do ponto de vista
que tal emenda não trouxe alterações ao processo eleitoral, mas, sim,
um mero aperfeiçoamento ao atual momento, o que justificaria o afastamento do
princípio da anterioridade da lei eleitoral.
Fonte: Conjur
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