(*) Sammya Priscila Duarte Santiago
Introdução
A Ludopatia, ou Transtorno do Jogo, é uma condição de saúde mental séria, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e classificada no Código Internacional de Doenças (CID-10) como F63.0. Diferente de um simples hobby ou de uma "mania de jogo" (CID Z72.6), a ludopatia é um vício compulsivo que pode devastar a vida financeira, social, familiar e emocional do indivíduo. Com o crescente acesso a plataformas de apostas online, a discussão sobre os impactos jurídicos dessa condição tornou-se premente, especialmente no que tange ao direito da saúde e ao direito bancário. Este artigo visa explorar os aspectos médicos da ludopatia e as possibilidades legais para anular apostas e reaver valores, considerando a vulnerabilidade do ludopata.
Ludopatia: Compreendendo o Transtorno do Jogo
A Ludopatia (CID-10 F63.0) é caracterizada por um padrão de comportamento de jogo persistente e recorrente, que pode ser progressivo em intensidade e frequência, e que se sobrepõe a outros interesses e atividades da vida. É fundamental diferenciar o Jogo Patológico (F63.0) da "mania de jogo e apostas" (Z72.6). Enquanto o CID Z72.6 se refere a um envolvimento excessivo com jogos que não necessariamente configura um transtorno mental, o CID F63.0 indica uma patologia grave, um vício que compromete a capacidade de controle do indivíduo.
Sintomas e Evolução do Quadro
Os sintomas da ludopatia são diversos e se manifestam de forma progressiva, afetando profundamente a vida do paciente. Dentre eles, destacam-se:
•Preocupação excessiva com o jogo: Pensamentos constantes sobre apostas passadas, presentes ou futuras, e formas de obter dinheiro para jogar.
•Necessidade de apostar quantias crescentes: Para alcançar a excitação desejada, o indivíduo precisa aumentar o valor ou a frequência das apostas.
•Inquietação ou irritabilidade: Ao tentar reduzir ou parar de jogar.
•Tentativas repetidas e fracassadas de controlar, reduzir ou parar de jogar.
•Uso do jogo como fuga: Para lidar com problemas ou aliviar sentimentos de desamparo, culpa, ansiedade ou depressão.
•Mentiras: Para esconder a extensão do envolvimento com o jogo de familiares, terapeutas ou outros.
•Comprometimento de relacionamentos: Perda de relacionamentos significativos, empregos, oportunidades educacionais ou de carreira devido ao jogo.
•Dependência financeira: Recorrer a empréstimos, vendas de bens ou atos ilícitos para financiar o jogo ou pagar dívidas de jogo.
•Perda de controle e impulsividade: O ludopata demonstra uma incapacidade de resistir ao impulso de jogar, mesmo ciente das consequências negativas. A tomada de decisões é comprometida, e o discernimento pode estar ausente em momentos de crise, levando a ações irracionais e perdas financeiras catastróficas.
A evolução do quadro é insidiosa, começando com apostas recreativas que gradualmente se tornam compulsivas, levando à perda da capacidade cognitiva de decidir e controlar. As consequências são devastadoras, incluindo superendividamento, falência pessoal, problemas legais, divórcio, isolamento social e, em casos extremos, ideação suicida.
Aspectos Jurídicos da Ludopatia: Direito da Saúde e Direito Bancário
A ludopatia, enquanto doença, confere ao indivíduo uma condição de vulnerabilidade que o direito brasileiro começa a reconhecer. A Lei nº 14.790/2023, que regulamenta as apostas de quota fixa no Brasil, já traz em seu bojo a preocupação com a proteção do apostador e a prevenção da ludopatia.
Capacidade Civil e Nulidade de Contratos
No âmbito do direito civil, a capacidade de uma pessoa para praticar atos da vida civil é um pilar fundamental. Embora a ludopatia não implique, por si só, em incapacidade civil plena, a condição pode afetar a capacidade de discernimento do indivíduo em momentos de crise compulsiva. O Código Civil brasileiro, em seu artigo 814, estabelece que as dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento, mas não podem ser repetidas (restituídas) voluntariamente. No entanto, essa regra geral pode ser mitigada quando há prova de que o apostador agiu sob coação, fraude ou, no caso da ludopatia, com sua capacidade de discernimento severamente comprometida pela doença.
A jurisprudência tem evoluído para considerar a nulidade de negócios jurídicos, incluindo apostas e empréstimos, quando comprovada a ausência de discernimento do ludopata no momento da transação. Para tanto, é crucial a demonstração de que o indivíduo estava em um estado de perda de controle e impulsividade tão acentuado que sua vontade estava viciada, ou seja, não era livre e consciente.
Direito Bancário e a Recuperação de Valores
O direito bancário desempenha um papel crucial na proteção do ludopata. Instituições financeiras e plataformas de apostas podem ser responsabilizadas por condutas que facilitem o superendividamento de indivíduos com transtorno do jogo. A Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181/2021), que alterou o Código de Defesa do Consumidor, visa proteger o consumidor em situação de superendividamento, permitindo a repactuação de dívidas e a busca por soluções que garantam o mínimo existencial.
A possibilidade de anular apostas e reaver valores pagos por um ludopata é um tema complexo, mas com precedentes favoráveis. Para que isso ocorra, é fundamental comprovar que as apostas foram realizadas em um contexto de compulsão patológica, onde o discernimento do indivíduo estava ausente. Isso pode envolver a anulação de contratos de empréstimo feitos para financiar o vício, bem como a restituição de valores apostados em plataformas que não adotaram medidas de proteção adequadas.
Requisitos para Ação Legal e Prova da Ludopatia
Para buscar a anulação de apostas e a recuperação de valores, a prova da ludopatia é essencial e deve ser robusta. Os requisitos incluem:
•Acompanhamento psiquiátrico/psicológico de pelo menos um ano: A regularidade e a duração do tratamento demonstram a cronicidade e a gravidade da condição.
•Relatório médico bem fundamentado: O relatório deve ser emitido por profissional de saúde (psiquiatra ou psicólogo) e atestar claramente que o paciente padece de vício em jogos (CID 10 F63.0), diferenciando-o de mania de jogo (CID Z72.6). Deve conter uma descrição detalhada dos sintomas, da evolução do quadro, relatos de situações de perda de controle e demonstração da impulsividade, perda da capacidade cognitiva de decidir e controlar, e a ausência de discernimento no momento das apostas, bem como as consequências do vício na vida do paciente.
•Documentação financeira: Extratos bancários, comprovantes de apostas, registros de dívidas e empréstimos que demonstrem o impacto financeiro do vício.
•Testemunhos: De familiares e amigos que possam corroborar a perda de controle e as consequências do vício.
Conclusão
A ludopatia é uma doença que exige atenção multidisciplinar, envolvendo tratamento médico e amparo jurídico. O direito brasileiro, por meio do direito da saúde e do direito bancário, oferece caminhos para proteger o ludopata e mitigar os danos causados pelo vício. A anulação de apostas e a recuperação de valores são possibilidades reais, desde que devidamente comprovada a condição patológica do indivíduo e a ausência de discernimento no momento das transações. É fundamental que os profissionais do direito atuem em conjunto com a área da saúde para garantir a proteção e a reabilitação desses indivíduos, promovendo a justiça e a dignidade humana.
(*) Advogada Especialista em Direito do Consumidor
Fonte: Artigo publicado, originalmente, no Jusbrasil
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