Como são as leis? Até onde as políticas públicas vão? E os imigrantes? Essas e outras questões foram debatidas no segundo dia do “Colóquio Internacional Cuidados, Direitos e Desigualdades”, que aconteceu na USP de 14 a 16 de abril
O segundo dia do Colóquio Internacional "Cuidado, Direitos e Desigualdades" foi marcado por discussões importantes sobre o direito e políticas do cuidado em seis países - Brasil, Colômbia, França, Uruguai, Estados Unidos e Canadá. O encontro marca a culminância do projeto Who Cares? Rebuilding Care in a Post Pandemic World, que ao longo de três anos promoveu a cooperação entre equipes acadêmicas dos países estudados.
A primeira palestra, de Jocelyn Olcott, da Duke University, considerou os esforços para redefinir o valor econômico do cuidado. Ela se concentrou nas redes de Mulheres do Sul Global, um negócio social de empoderamento econômico de mulheres refugiadas, por meio do ofício da costura, promoção do empreendedorismo e capacitação de habilidades. Ela lembrou que passados 50 anos desde a declaração do Ano Internacional da Mulher (ONU 1975), essas mulheres têm chamado atenção da ONU e outras organizações internacionais, como a OIT para reivindicar um sistema de medição econômico que valorize o cuidado necessário para futuros sustentáveis.
Cuidar de si
Como é o direito ao cuidado? A quem atinge? E como? Essas e outras questões foram debatidas na mesa Direito ao cuidado como direito humano. A discussão começou com a professora Laura Pautassi, da Universidade de Buenos Aires. Sua linha de trabalho abrange três dimensões centrais do cuidado: o direito de cuidar, de ser cuidado e cuidar de si mesmo (autocuidado). Essa definição foi parte de importantes avanços conceituais e metodológicos alinhados a uma perspectiva de gênero e direitos humanos na América Latina.
Laura afirmou que a agenda feminista foi fundamental para esse processo, desde o consenso de Quito, em 2007 até o Ciclo de Conferências da Argentina, em 2022. “O direito ao cuidado é universal. Temos que pensar também no autocuidado e nas políticas públicas. O mercado não tem como cobrir tudo", afirmou ela.
Mulheres em movimento
A Colômbia é a maior receptora de mulheres venezuelanas do mundo. A partir dessa premissa, as professoras Carolina Moreno e Camila Vega-Salazar, da Universidad de Los Andes, Colômbia, analisaram a necessidade de reconhecer o direito a políticas públicas para o que elas chamaram de “Mulheres em Movimento”. “Elas representam 50% das imigrantes e precisam ter direitos e cuidados", disse Carolina.
Para entender melhor como é a vida dessas mulheres, as pesquisadoras fizeram conferências online com mulheres em Bogotá, Medelin, Cali, na Colômbia, Lima e Quito, no Peru, somando 31 participantes no total. Todas as participantes eram venezuelanas, trabalhando em casa, sem remuneração. O que elas concluíram:A regularização do trabalho é essencial para conseguir a inclusão social;
Trabalho não remunerado é um obstáculo para a regularização;
A maioria das participantes não reconhece o cuidado como um direito humano.
Políticas de cuidado: um panorama global
A socióloga Heidi Gottfried (Wayne State University), em coautoria com Eileen Boris (UC Santa Barbara), apresentou os resultados do projeto Caring Beyond Borders, que analisou políticas de cuidado em 38 países por meio do Global Care Policy Index (GCPI). O índice avalia o grau de proteção legal e institucional oferecido a dois grupos: trabalhadores pagos de cuidado (como cuidadores domiciliares e domésticas) e pessoas que realizam cuidado não remunerado nas famílias. Segundo a pesquisadora, os sistemas de cuidado falharam durante a pandemia, e mesmo em países com legislações avançadas, o cuidado domiciliar seguiu sem EPIs, direitos ou compensações adequadas.
Anne Eydoux, do Conservatoire National des Arts et Métiers (França), analisou o contexto francês, destacando a fragmentação das políticas públicas e a privatização de creches. Ela apontou que a crise no setor do cuidado — com escassez de mão de obra, más condições de trabalho e falta de reconhecimento legal — antecede a pandemia. Na França, por exemplo, muitos cuidadores de idosos e trabalhadores domésticos não foram sequer reconhecidos como essenciais durante a crise sanitária.
Os direitos e obrigações relacionados ao cuidado no Brasil são fragmentados, com abordagens diferentes em cada área do Direito. Partindo dessa constatação, cinco pesquisadores, sob a liderança de Regina Stela Corrêa Vieira, da Universidade Federal de São Paulo e do CEBRAP, mapearam a entrada em circulação do cuidado em três frentes: literatura jurídica, marco normativo e decisões judiciais. O trabalho aconteceu ao longo do projeto Reconstruindo o cuidado na pós pandemia.65% das ações trabalhistas sobre cuidado remunerado na família envolvem empregadas domésticas ou cuidadoras domiciliares;
87% dos casos na Justiça Cível que tratam de cuidado prestado pelo mercado envolvem planos de saúde contestando o cuidado domiciliar indicado;
92% dos casos penais sobre cuidado não remunerado referem-se a crimes contra crianças ou idosos;
E que mães são mais cobradas judicialmente que pais, revelando um viés de gênero estrutural na aplicação do “dever de cuidado”.
Sistemas nacionais de cuidado na América Latina
A segunda mesa da tarde trouxe experiências recentes de construção de políticas nacionais de cuidado em três países latino-americanos.
Javier Pineda, da Universidad de los Andes, apresentou os caminhos trilhados pela Colômbia na formulação de sua política nacional. Ele destacou os desafios estruturais do país, como a desigualdade regional e as limitações orçamentárias, mas também apontou os avanços no reconhecimento do cuidado como parte essencial da proteção social. Na Colômbia, que abriga cerca de 2,8 milhões de imigrantes venezuelanos — metade deles mulheres —, o desafio é incluir esse público em políticas de cuidado que garantam proteção social e reconhecimento do trabalho informal.
Luana Pinheiro, subsecretária de Economia do Cuidado do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social (MDS), apresentou os principais pontos da Política Nacional de Cuidados do Brasil, instituída pela Lei 15.069/2024 e sancionada em dezembro do ano passado. A política foi elaborada com participação de 20 ministérios, sob coordenação conjunta do MDS e da Secretaria Nacional de Cuidados e Família, dirigida por Laís Abramo, com apoio técnico de IBGE, IPEA, Fiocruz e organismos da ONU.
Entre os objetivos centrais estão: garantir o direito ao cuidado como direito universal, valorizar o trabalho remunerado e não remunerado, promover trabalho decente, enfrentar desigualdades e promover uma mudança cultural na forma como a sociedade vê e distribui as responsabilidades do cuidado. O plano define públicos prioritários — como crianças, idosos, pessoas com deficiência e cuidadores — e prevê uma abordagem intersetorial e federativa. Os principais desafios agora são garantir orçamento próprio, fortalecer movimentos sociais em torno da pauta e consolidar a política como prioridade do Estado.
Francisca Gallegos, Subsecretária de Serviços Sociais do Chile, apresentou o processo de construção da política chilena, ancorado em três instrumentos: o Projeto de Lei de Cuidados, a Política Nacional de Apoios e Cuidados (2025–2030) e um Plano de Ação com 100 medidas (2025–2026). O trabalho combinou mapeamento técnico — com 60 programas de cuidado identificados — e ampla escuta social, com 12.600 participantes em consultas digitais, encontros regionais e espaços de diálogo. Entre os principais desafios, estão a governança intersetorial, a expansão territorial da cobertura e a sustentabilidade financeira do sistema. “Sem as vozes das mulheres, não estaríamos onde estamos”, afirmou.
Valentina Perrotta, da Universidad de la República (Uruguai), encerrou a sessão com uma reflexão crítica sobre os riscos de romantizar o cuidado como solidariedade ou responsabilidade familiar, sem reconhecimento institucional. Para ela, os sistemas de cuidado na América Latina seguem marcados por desigualdades de gênero, racialização do trabalho e informalidade estrutural. “Cuidado não é caridade, é direito”, afirmou, defendendo políticas de Estado com base na literatura feminista latino-americana e compromissos orçamentários de longo prazo.
Conferência: olhares latino-americanos sobre o cuidado
Encerrando o dia, a conferência da socióloga Karina Batthyány, também da Universidad de la República, no Uruguai, trouxe uma perspectiva latino-americana sobre os desafios e horizontes do cuidado. Defensora de um novo pacto social com base no reconhecimento do trabalho reprodutivo, Karina propôs que o cuidado seja visto como motor de sustentabilidade social. Para ela, a região tem muito a ensinar ao mundo — desde que escute, valorize e proteja quem cuida.
Nice Castro/ Circular Comunicações
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