A “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire, permanece até hoje como uma das obras mais lidas e debatidas nos círculos educacionais de todo o mundo. Ao defender uma educação libertadora, dialógica e baseada na escuta ativa dos alunos, Freire propôs um rompimento com a educação bancária — aquela que trata o aluno como um cofre vazio a ser preenchido com conhecimento pronto.
No entanto, não são poucos os que, ao se depararem com a prática pedagógica inspirada em Freire, levantam a crítica: estaria essa proposta se transformando em uma espécie de anarquia disfarçada? É legítimo confundir liberdade com falta de estrutura? Autonomia com ausência de autoridade?
A crítica é provocadora e merece análise. De um lado, há educadores que se agarram ao legado freiriano como uma bússola ética e política para enfrentar a desigualdade e o autoritarismo nas escolas. De outro, há aqueles que veem na aplicação acrítica dessa pedagogia uma ameaça à ordem, ao conhecimento estruturado e à própria função do professor como mediador do saber.
Afinal, o que é, a pedagogia do oprimido?
Freire propõe que o ato de ensinar não pode estar dissociado do ato de escutar. Para ele, o educador precisa reconhecer no aluno um sujeito histórico, capaz de pensar, refletir e transformar a realidade. O conteúdo não deve ser imposto, mas problematizado. O professor deixa de ser o detentor exclusivo do saber e passa a construir o conhecimento com os estudantes, a partir de suas realidades.
Essa proposta, quando bem compreendida, está longe de sugerir anarquia. Pelo contrário, exige um grau elevado de planejamento, escuta, sensibilidade e compromisso. A liberdade em sala de aula não é sinônimo de desordem, mas condição para que o pensamento crítico floresça.
Contudo, quando mal interpretada — ou mal aplicada — a pedagogia freiriana pode sim degenerar em práticas confusas, onde tudo se relativiza e a autoridade pedagógica se dissolve.
É nesse ponto que surge a polêmica: ao buscar emancipar o aluno, estamos abandonando o papel estruturante da escola? A pedagogia da libertação virou um álibi para a ausência de critérios, objetivos e avaliação?
Educação libertadora ou sala sem direção?
Em algumas experiências pedagógicas ditas "freirianas", o que se observa é uma espécie de informalidade absoluta, onde os conteúdos curriculares são deixados de lado em nome de uma escuta que, embora bem-intencionada, se torna vaga, sem mediação crítica. O professor, temendo parecer autoritário, abdica da orientação, do direcionamento e da cobrança. O aluno, por sua vez, não raro se perde num mar de opiniões desconectadas de uma base mais sólida.
A pergunta que se impõe é: liberdade para quê? Autonomia baseada em quê? Freire nunca defendeu uma escola sem critérios, sem método ou sem exigência. Ao contrário: sua pedagogia requer um profundo compromisso com o rigor epistemológico e com a responsabilidade ética de ensinar bem. O que ele combateu foi a verticalidade cega, a opressão silenciosa da escola tradicional, que sufoca a criatividade e o pensamento crítico.
Autoridade não é autoritarismo
Há uma diferença essencial entre autoridade e autoritarismo. A primeira é legítima, necessária e desejável. O professor que domina o conteúdo, que media com escuta e firmeza, que estabelece limites com diálogo e clareza, exerce uma autoridade saudável — uma autoridade que educa. Já o autoritarismo é o uso arbitrário do poder, sem escuta nem respeito, algo que Freire combateu com vigor.
O problema é que, na ânsia de romper com o autoritarismo, alguns educadores descartam também a autoridade. E aí, sim, abre-se espaço para uma espécie de “anarquia pedagógica”, onde tudo é permitido, mas nada é exigido; onde a liberdade vira sinônimo de ausência total de critérios, e onde o professor abdica de sua função mediadora.
O que a pedagogia freiriana realmente propõe
É importante resgatar a essência do pensamento de Freire, que está longe de ser ingênuo ou permissivo. Ele propõe um educador que escuta, sim, mas que também provoca; que respeita, mas que desafia; que acolhe, mas que exige. A pedagogia do oprimido é um convite à transformação, não uma carta branca ao improviso.
Ela convida à politização do ato de educar, o que não significa partidarização, mas compreensão de que toda educação carrega um projeto de mundo. Ensinar matemática, história ou ciências também é ensinar formas de pensar, de argumentar, de se posicionar no mundo.
Portanto, reduzir a pedagogia freiriana à permissividade é uma distorção. Mas ignorar que algumas práticas equivocadas vêm sendo justificadas em seu nome também é um erro.
Como em qualquer abordagem pedagógica, há riscos de má interpretação e aplicação superficial. E é aí que o debate precisa acontecer — com seriedade, criticidade e compromisso com a educação de qualidade.
Conclusão: entre o ideal e a prática
A educação proposta por Freire é exigente. Requer professores bem formados, dispostos ao diálogo, mas também conscientes de seu papel. Exige escolas que garantam condições mínimas de trabalho, valorização profissional e respeito ao tempo de aprendizagem. Não é uma pedagogia da anarquia, mas da esperança crítica.
A pergunta do título, portanto — Pedagogia do oprimido ou da anarquia em sala de aula? — é mal colocada se partirmos do pressuposto de que os dois são incompatíveis. A anarquia, no sentido de desordem e ausência de critério, não encontra amparo no pensamento freiriano. Já a pedagogia da liberdade, da escuta e do pensamento crítico, essa sim é o coração pulsante da proposta.
Mas para que não se transforme em caricatura, a pedagogia do oprimido precisa ser compreendida em sua profundidade — com método, com ética, com rigor e, sobretudo, com o compromisso de formar sujeitos capazes de ler o mundo… e transformá-lo.
(*) Professor com 35 anos de praxis em sala de aula
Não
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