(*) Valter Bernat
Deixei a poeira baixar um pouquinho pra poder tocar neste assunto. O recente PL 1904 cujo regime de urgência foi aprovado em 23 segundos pelo plenário da Câmara, é uma daquelas coisas bizarras que brotam de nosso Congresso.
Ainda bem que as reações, da mídia e das ruas farão com que a maioria da Câmara
rejeite este PL, até porque sua aprovação colocaria o Brasil numa pequena lista
de nações com penas de prisão às mulheres que interrompem a gravidez. No
momento, sem este PL, somos parte de um grupo de países que preveem pena de até
cinco anos de prisão para quando o procedimento é feito fora das condições
legais.
Na
realidade, em vez de progredirmos em relação à lei vigente, que permite o
aborto para casos específicos, o novo projeto equipara o aborto ao homicídio,
criando a situação esdrúxula de a pena da mulher violentada ser maior do que a
do estuprador. Surreal!
Sim,
aqui não se trata de ser a favor ou contra o aborto. Esta é uma discussão longa
e que ambos os lados têm suas razões e merecem ser ouvidos. Pra mim, o corpo é
da mulher, logo ela tem que poder decidir o que fazer com ele. Só vale lembrar
que caso o aborto fosse aprovado, nenhuma mulher seria obrigada a se submeter a
este procedimento, é só uma saída pra ela se assim ela entender. Pronto, falei!
Como
disse não quero debater este assunto, o mote aqui é a culpabilidade da vítima e
suas consequências.
Muito
simples deduzir que, em caso de aprovação desta lei, obviamente, haverá a fuga
na procura dos serviços de saúde oficiais para tal fim, por medo da
criminalização, aumentando os riscos e gerando impunidade para os estupradores
e mortes para as mulheres e meninas que irão buscar esta ajuda “outside
the law”!
Infelizmente,
o nosso Conselho Federal de Medicina, apesar das permissões legais, tem
orientado os médicos a restringir qualquer procedimento após as 22 semanas.
Ora, não há no Código Penal um prazo máximo para aborto legal, seja nos casos
de anencefalia, de risco de vida à mulher ou em caso de estupro, então por que
o CFM “ameaça” seus membros com processos de ética e até perda de seu registro
no caso de “eles desobedecerem ao CFM e obedecerem a lei”! Curiosa, esdrúxula e
ridícula a posição deste Conselho tão importante para a regulação dos
procedimentos médicos em nosso país.
Pois
bem, imaginemos uma situação, muito comum em muitas cidades do interior e até
mesmo nas capitais:
Uma
menina, muito novinha (10/13 anos), começa a ser bolinada dentro de casa, por
um parente próximo. Ela nem sabe o que é aquilo e o que significa. A jovem é
alertada pelo abusador que não pode falar sobre o assunto com ninguém. Sente
dor e tem medo. Com o passar do tempo, vira mocinha e morre de vergonha. Um dia
percebe que a menstruação não chega. Pensa que é normal. O tempo vai passando e
a barriga, crescendo. Ela esconde da família, ou às vezes, nem percebe. O
abusador responsável então se afasta, mas antes avisa que, se ela abrir a boca,
vai se arrepender. Sua mãe, ou parente próximo percebe.
E,
assim, essa menina está condenada a uma gravidez perigosa – pois ainda é bem
nova – ou a uma sentença de 20 anos, segundo este PL. O estuprador, se for pego
e condenado, poderá ficar no máximo 10, mas ela poderá pegar 20 anos? Vale
lembrar que a menina terá que conviver, diariamente, com o “fruto” e lembrança
do crime. É um disparate!
Estas
barbaridades independem de ideologia, se vêm da direita, da esquerda ou de nem
um nem outro lado.
Este
PL é danoso às políticas públicas de saúde e cruel com mulheres – meninas em
particular, que são a maioria dos casos. Coagem profissionais de saúde e,
vergonhosamente, é complacente com estupradores e não corresponde ao sentimento
da sociedade, e pior – repetindo – culpando a vítima!
A
própria OAB já se manifestou quanto à inconstitucionalidade deste PL, no caso
de ele ser aprovado, por ter “linguagem punitiva, depreciativa e cruel”,
porque incide, de forma atroz, sobre a população mais vulnerável, ou seja,
mulheres pretas, pobres e de baixa escolaridade, que é o perfil, como vimos, da
maior incidência deste casos.
Como
já dito, quando uma mulher, violentada sexualmente, não conseguir acesso à rede
pública, será obrigada a levar a gestação indesejada ao final ou, pior,
submeter-se a procedimentos escusos em clínicas que não lhe oferecem a
segurança desejada.
Os
deputados, antes de tomarem posse na Câmara, deveriam fixar seu olhar, durante
no mínimo 5 minutos, para o monumento que homenageia Ulysses Guimarães e agir
como um legítimo representante do Legislativo. Infelizmente estão fazendo
exatamente o contrário.
Enfim,
mais um absurdo “nascido” – desculpem o trocadilho – da nossa Câmara!
(*)
Advogado, analista de TI e editor do site O Boletim
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