Laura
Petit da Silva perdeu as contas de quantas vezes viajou a Brasília para
pressionar políticos por informações sobre seus irmãos desaparecidos na
ditadura militar e apoio do Estado em busca de justiça.
Lembra-se
de que em algumas ocasiões, desde o primeiro mandato de Lula (PT), em 2003, o
petista chegou a marcar de recebê-la com outros parentes das vítimas, mas na
hora agá alegava outro compromisso, e o encontro era desmarcado.
Ainda
assim, aos 77 anos, Laura tinha expectativa de que desta vez a pauta recebesse
maior atenção. "Reacendeu nossa esperança porque achamos que, depois de
quatro anos de desgoverno Bolsonaro, pudéssemos recuperar nossas bandeiras de
luta. Nós, que sempre o apoiamos, nos sentimos traídas. É uma decepção muito
grande, um desencanto."
Ela
se refere à demora do governo em recriar a Comissão de Mortos e Desaparecidos,
às recentes declarações de Lula de que a ditadura "faz parte da
história" condenadas por um manifesto de 150 entidades e à determinação
do presidente para que órgãos do governo não lembrem os 60 anos do golpe, em 31
de março o que forçou o Ministério dos Direitos Humanos a cancelar um ato já
programado.
Dois
irmãos (Jaime e Lúcio) e uma irmã (Maria Lúcia) de Laura foram mortos pela
repressão na região do Araguaia. Militantes do PC do B, integraram a guerrilha
rural dizimada pelos militares nos anos 1970.
Conforme
depoimentos de testemunhas e relatórios das Forças Armadas, Jaime e Lúcio foram
assassinados após presos o primeiro teve a cabeça decepada.
Seus
restos mortais nunca foram encontrados. Os de Maria Lúcia, sim, após uma busca
da própria família. Resgatados em 1991, só seriam sepultados em 1996.
Laura
chora ao lembrar o trajeto de carro até o cemitério ao lado da mãe, hoje
falecida. "Íamos com grande tristeza, mas com certo conforto porque
estávamos enfim dando a ela uma sepultura com dignidade, o que tantas famílias
ainda não conseguiram."
Suzana
Keniger Lisboa engrossa o coro de familiares desapontados com Lula. "Como
presidente da República, ele deveria saber que você não pode passar por cima da
história. Ele quer fazer de conta que não existiu? Fazer de conta que não foi
preso? Lá no palácio, tinha a ficha do Dops dele, ele conseguiu resgatar.
Quantos não conseguiram ter uma foto do seu familiar desaparecido?",
questiona.
Viúva
de Luiz Eurico Tejera Lisboa, militante da ALN (Aliança Libertadora Nacional)
assassinado em 1972 mais um caso em que a ditadura forjou um suicídio e cujo
corpo foi o primeiro de um desaparecido a ser encontrado (em 1979), Suzana
assinou a ata de fundação do PT e trabalhou por anos no partido, inclusive com
Lula.
"Mas
não é isso [o desdém de quem já foi tão próximo] que me deixa indignada. O que
me revolta é ele ter recebido o pipoqueiro da esquina e não ter recebido os
familiares", diz Suzana.
"O
que mais me impressiona é o total desconhecimento dele. Onde já se viu dizer
que, ah, porque os militares que estão aí eram crianças [na época do golpe].
Nós estamos falando de história, e ele, como presidente, tem responsabilidade
política sobre fatos da história do país. Ele é anistiado. Ele não sabe o que é
tortura? Acho muito triste a ignorância dele sobre isso."
Suzana,
Laura e incontáveis familiares de mortos e desaparecidos têm martelado:
continuam sem resposta ao pedido para um encontro com o mesmo Lula que, em
viagem à Argentina em janeiro do ano passado, se reuniu com as Mães e Avós da
Praça de Maio, às quais declarou: "obrigado por pessoas como vocês
existirem".
Sobre
a versão de que Lula age assim para não entrar em confronto com os militares,
Suzana afirma: "Não queremos matar nem torturar militar, como eles fizeram
com nossos familiares. Não é confronto, é justiça. O Brasil é o único país em
que tu querer saber o que aconteceu com o teu familiar é considerado
revanchismo".
Suzana
Lisboa integrou por dez anos, de 1995 a 2005, a Comissão de Mortos e
Desaparecidos. Deixou o colegiado queixando-se de que Lula não comprou a briga
pela abertura dos arquivos da ditadura. Mesmo sem ilusões sobre o petista,
esperava que agora fosse diferente.
"Porque
o Lula foi preso. Eu achava que ele tinha refletido e se dado conta: Tenho que
enfrentar essa direita ou eles vão me engolir."
De
fato, a atual postura de Lula confirma e reforça sua tendência de conciliação
com os militares observada nos dois primeiros mandatos. Um símbolo desse
comportamento foi trabalhar nos bastidores para que o Supremo rejeitasse uma
ação da OAB que buscava punição, a despeito da Lei de Anistia, a crimes como
tortura, assassinatos e ocultação de cadáver.
Outro
foi a demissão, em 2004, do seu primeiro ministro da Defesa, o diplomata José
Viegas, que entrara em confronto com o então comandante do Exército, general
Francisco Albuquerque.
Em
resposta a uma reportagem sobre o assassinato de Vladimir Herzog, o Exército
divulgou, sem consultar Viegas antes, uma nota que relativizava a tortura na
ditadura. Lula ficou ao lado do general Albuquerque, e Viegas pediu demissão.
O
líder petista sempre incorporou o discurso dos militares de que a Lei de
Anistia impedia a punição a crimes da ditadura apesar de cortes internacionais
decidirem que graves violações de direitos humanos não devem ser contempladas
pela lei.
Por
outro lado, no segundo governo Lula, na gestão do ministro Paulo Vannuchi, foi
proposta, não sem atritos com a caserna, a criação da Comissão Nacional da
Verdade, para aprofundar investigações sobre os crimes de Estado na ditadura aprovada
no Congresso Nacional e instalada somente no mandato de Dilma Rousseff (PT).
As
fissuras decorrentes dos ataques golpistas de 8 de janeiro e a participação de
militares naquela e noutras tramas golpistas, como fica cada vez mais claro,
seriam a causa da cautela excessiva (ou covardia, como muitos preferem definir)
de Lula. Auxiliares do presidente lembram que oficiais-generais de quatro
estrelas têm ido à Polícia Federal depor, algo inédito no país.
Ministério
da Defesa e Comando do Exército negam que os militares pediram algo nesse
sentido a Lula ou que exista um acerto entre as partes para baixar a fervura
nos 60 anos do golpe tampouco haverá Ordem do Dia alusiva à data por parte do
ministro José Múcio ou dos comandantes das Forças Armadas, como já não houve no
ano passado.
No
Quartel-General do Exército, as falas e os atos de Lula surpreenderam
positivamente, pela sintonia com a posição histórica da corporação, e foram
atribuídos ao tino político do presidente num momento de dificuldades com o
Congresso e recuo na popularidade.
No
palácio e na caserna, espocam versões para os gestos de Lula. Uma delas é a de
que os militantes de direitos humanos são uma base tão fiel e orgânica do
petista que, ainda que se incomodem, não deixarão de votar nele.
Não
é bem assim, diz Suzana Lisboa. "Depois disso, eu acho que só [voto em
Lula] contra o Bolsonaro, e mesmo assim fica difícil", afirmou. "Nós
ficamos sozinhos, a esquerda nos abandonou. Fui a um ato de memória contra a
ditadura na Argentina, foi emocionante ver que a esquerda está com eles.
Conosco nunca esteve, nem o PT nem ninguém. Pessoas individualmente nos
apoiaram nesses anos. Mas nunca o PT como um todo."
A
proibição imposta por Lula aos órgãos do governo nos 60 anos do golpe é tida
como excessivamente condescendente mesmo por quem compreende a cautela do
presidente. É o caso de Carlos Fico, professor titular de história da UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor de "Como Eles Agiam"
e outros livros referenciais sobre a ditadura.
"Foi
uma eleição difícil, ele ganhou por margem estreita, há toda uma bancada
conservadora na Câmara. Seria muito difícil ter uma atitude de enfrentamento
como talvez devesse ocorrer num mundo ideal. Mas pedir que não haja cerimônias relacionadas
ao aniversário do golpe é um erro mesmo, intelectualmente indefensável",
diz Fico.
O
historiador que finaliza um livro sobre intervencionismo militar na história
nacional, "A Utopia Autoritária Brasileira" aponta para uma questão
geracional.
"Os
presidentes desde o fim da ditadura sempre tiveram esse excesso de reverência
ou mesmo medo em relação aos militares. Quem viveu o auge da repressão já como
adulto parece ter desenvolvido essa cautela excessiva. Espero que no futuro as
novas lideranças políticas da esquerda e democratas em geral desenvolvam uma
atitude menos reverencial."
Maria
Celina D´Araújo, também decana entre os estudiosos do tema, professora
aposentada da PUC-RJ e do Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil da FGV, concorda com Fico, agregando outros elementos à
análise.
"Lula
reflete o senso comum da classe política e da média dos brasileiros, de que os
militares são uma instituição que sabem cuidar de si e que a gente não deve
criticar nem cobrar e que o passado passou, não deve ficar
escarafunchando."
"A
sociedade brasileira é militarista, tem um fascínio, um respeito pelos
militares acima da média dos nossos vizinhos", diz Maria Celina,
coorganizadora de obras como "Geisel" e "Visões do Golpe",
que reúnem depoimentos de figuras-chave da ditadura.
Para
ela, desde a Proclamação da República, "os militares se autoconceberam
como uma casta, e as castas são intocáveis, entendem que não podem ser cobradas
nem criticadas. Acham que estão sempre certos, que são melhores que os civis,
que são moralmente mais corretos, mais patriotas, são mais tudo".
Embora
Lula tenha introjetado o discurso militar, acrescenta, ele foi eleito com uma
pauta mais crítica do que em 2002 e em 2006.
"O Bolsonaro realmente abusou de repudiar dos seres humanos, dos direitos humanos. Então, quem apoiou o Lula, em grande parte, pensou nisso: queremos um presidente que vai respeitar as pessoas, respeitar os direitos."
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