O
cientista político português André Freire, autor de Para lá da
‘Geringonça’ - o governo de esquerdas em Portugal e
na Europa (Lisboa, 2017, Contraponto Editores), vê pouca semelhança entre
a aliança de apelido jocoso – que há alguns anos uniu, no governo luso, os
partidos Socialista, Comunista, Os Verdes e o Bloco de Esquerda sob a liderança
de António Costa – e a frente ampla pretendida pelo
presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o Brasil.
Para
o pesquisador, há poucos paralelos entre a coligação formada no meio da década
passada por legendas esquerdistas lusitanas – que havia 40 anos não conseguiam
se unir para governar – e a união tentada por Lula no Brasil, que vai do PSOL à
direita moderada. O que se desenha no País, observou, é mais uma “grande
coligação”, com perfil “arco-íris” – vai da esquerda radical à “direita
democrática”– , o que exigirá muito de Lula e pode não funcionar.
“(A
grande coligação) É uma frente ampla que até pode ter mais partidos do que
os que são necessários para fazer a maioria absoluta”, afirmou Freire, que é
doutor em Sociologia Políica, Ciência Política e Governo pelo Instituto de Ciências
Sociais da Universidade de Lisboa e é atualmente diretor de Doutoramento do
Instituto Universitário da capital portuguesa (ISCTE-IUL). “Agora, não vai ser
fácil. Desse ponto de vista é uma geringonça. Gerigonça significa uma máquina
que você não espera que funcione. Uma coisa que a gente não espera que as peças
se juntem.”
Freire
destaca a força eleitoral demonstrada pelo agora ex-presidente Jair
Bolsonaro, mesmo tendo sido derrotado, como um fator a ser considerado.
Para o pesquisador, iniciativas violentas de bolsonaristas, como o quebra-quebra de Brasília, em 12 de dezembro, e as ações
associadas a terrorismo, como a bomba no aeroporto de Brasília, que são investigadas pela Polícia Federal, configuram uma oposição
desleal. E podem ajudar o presidente Lula a manter unido o governo que formou
com forças tão díspares.
A
seguir, os principais trechos da conversa com o pesquisador, via Zoom.
O
Brasil tem um novo governo chefiado por um político de esquerda, o presidente
Lula, com o que pretende ser uma frente ampla, com apoios que vão da direita
moderada à esquerda mais radical. O que o senhor, que estudou a Geringonça, a
aliança de partidos de esquerda em Portugal, teria a dizer sobre isso? É
possível alguma comparação?
Bem,
nós devemos sempre aprender umas coisas uns com os outros, todos aprendemos.
Agora digamos… Eu acho as situações muito diferentes. Porque o que nós tínhamos
aqui (em Portugal) era uma situação em que, ao longo de 40 anos, as esquerdas
nunca tinham conseguido entender-se para governar. Quer dizer, no período
constitucional, porque nossa transição para a democracia começou em 74. Depois,
em 75, foi eleita uma assembleia constituinte, cuja função era desenhar a
Constituição. Até aí houve governos provisórios. Depois, em 76, é publicada a
nova Constituição. Durante os governos provisórios, o Partido Comunista ainda
esteve no governo. E depois, durante o período constitucional, ou seja, de 76
até 2015, nem os comunistas, (nem) o Bloco de Esquerda, que é o partido da nova
esquerda, que aparece como uma espécie de cisão… Em parte cisão de pessoas da
galáxia do PC, e que saem… E maoístas, trotskistas, se unem, fazem uma frente
de esquerda. E portanto nós tinhamos uma esquerda que era incapaz de governar.
Quando o Partido Socialista tinha a maioria… Bem, até àquela altura (o PS) só
tinha tido uma vez maioria absoluta de deputados no Parlamento. Nosso sistema é
diferente do vosso, porque não é presidencialista, é semipresidencial, mas no
fundo funciona como um sistema parlamentar. Forma-se (o governo) a partir da
maioria parlamentar. Então nós tivermos 40 anos mais ou menos, quarenta e tal
anos, em que a esquerda era incapaz de se entender para governar. Teve alguma
coligação em Lisboa, que foi o antigo presidente Sampaio que deu a mão ao PC,
em 89, logo a serguir à queda do Muro de Berlim, uma coisa curiosa. E também
alguma coisa no arquipélago da Madeira, na câmara do Funchal. E no resto nunca
se tinham entendido.
Quais
outras diferenças o senhor vê?
O
que tivemos aqui não foi uma grande coligação. O que vocês vão ter aí? Eu acho
que é diferente. Eu sei que até cientistas políticos meus amigos falaram na
Geringonça, logo quando o Lula chamou o (vice-presidente Geraldo) Alckmin. Um
homem que vem do PSDB, essa talvez seja a novidade. O PSDB também está a se
desfazer. Mas é uma simbologia. Eu acho que, sinceramente, os paralelismos com
a situação portuguesa… Porque o Brasil sempre teve presidencialismo de
coalizão. Sempre teve coligações mais ou menos amplas ou então coisas ad hoc (específicas,
com um único objetivo). Eu acho que vocês têm partidos demais, deve ser o
sistema político mais fragmentado do mundo, em termos de número de partidos.
Agora, acho que é preciso uma frente ampla, o Lula tem que fazer uma frente
ampla.
Como?
Em torno de quê?
Eu
acho que o Lula não tem uma tarefa fácil pela frente. Eu acho que essa solução
política brasileira é mais comparável com o que nós, em Portugal, chamamos
bloco central. Os dois grandes partidos, o PS e o PSD, se coligarem para
governar. Só houve uma vez, em 83-85. Isso na Europa chamamos de grande
coligação. É uma frente ampla que até pode ter mais partidos do que os que são
necessários para fazer a maioria absoluta. O presidente tem autonomia para
governar mas depois precisa passar a legislação no Congresso, não é? E precisa
de apoio. Porque apesar de tudo o (ex-presidente Jair) Bolsonaro e as forças
forças ligadas ao Bolsonaro, a direita radical e a extrema direita tiveram
votações muito significativas, e o próprio (Bolsonaro), apesar de tudo, teve
uma votação confortável. Eu acho que o Brasil precisa, e o que o Lula está a
tentar fazer, é uma frente ampla. Na Europa costumamos chamar a isso uma grande
coligação, uma coligação sobredimensionada e que é arco-íris. A nossa
Geringonça não era arco-íris. Os cientistas políticos chamam arco-íris quando
tem a esquerda e a direita juntas, não é? O PT que é um partido
social-democrata, quando foi o tempo da terceira via, era a terceira via
latino-americana. Não era o Chavez, não era a esquerda radical como algumas
pessoas diziam. Agora, é preciso uma frente muito mais ampla que abranja o
centro e a direita democráticas. Sabe para quê? Para defender a democracia.
Uma
frente tão ampla consegue se sustentar ou a tendência é que ela comece a se
fragmentar? Porque no governo Lula são muitas forças diferentes, de
conservadores até o PSOL. Essa frente tem condições de se manter? Qual poderia
ser o “cimento” para mantê-la unida?
Nós
aqui em português de Portugal temos uma expressão, que é o saco de gatos…
Temos
essa expressão também no Brasil…
Vocês
também a têm aí? Nesse aspecto, há um paralelismo com a Geringonça
portuguesa. Por que a Geringonça se chamava Geringonça? Isso foi
uma palavra que um político muito engraçado, Vasco Pulido Valente, que já
morreu, inventou, para denegrir. Porque não se esperava que aquilo funcionasse,
tinham posições muito diferentes. Tiveram quarenta e tal anos sem serem capazes
de se entender, e tinham posições muitos diferentes em termos de várias
áreas-chave da política. No entanto, se entenderam. Eu acho que um “cimento”
que é preciso ter é consciência de defender a democracia. Essa é a prioridade,
mas agora também não nego que a situação é muito, muito complicada. Tem que
pensar em defender a democracia, porque se isso não correr bem… A democracia no
Brasil, direi eu, humildemente, é uma posição externa, é a minha opinião, já
não anda lá muito famosa. Com toda a legitimidade democrática que tinha, não é?
Porque foi eleito, ninguém ninguém andou a botar pistolas à cabeça das pessoas
para votarem no Bolsonaro. Portanto acho que o “cimento” deve ser em primeiro
lugar a democracia, e depois… Eu por acaso estive aí no verão passado, mas eu
nunca tinha ido ao Brasil, portanto eu não sei não tenho termo de comparação.
Chocava-me tanta gente a viver na rua! Aqui em Portugal somos pobres. Há uns
tipos mais ricos e tal, mas, quer dizer não há as discrepâncias (que há no
Brasil). Estava lá em Ipanema, lá em cima havia uma favela, em cima… Estive em
Belo Horizonte, que eu aliás adorei. Adorei as coisas boas que vi, que tem o
melhor do mundo, depois tem aquelas coisas todas de miséria chocante, não é?
Acho que isso também é preciso aplacar. Os meus amigos dizem que piorou muito
durante o exercício (mandato) do Bolsonaro. Eu não sei se é verdade ou não, não
estive a olhar para dados estatísticos, não conheço assim bem o Brasil para
saber se foi ou não foi. Mas acho que que isso também deve ser uma prioridade.
Tem outra coisa que deve ser um “cimento”. O que se deve evitar é governações
ad hoc. Comprar um voto aqui, um voto ali, isso não é bom. Isso é um problema
do sistema político brasileiro que tem demasiados partidos, partidos não
ideológicos. Portanto acho que o “cimento” deve ser defender a democracia,
recuperar (reduzir) essa pobreza e essa desigualdade que me parece muito
gritante aí no Brasil e evitar governações com alianças ad hoc, porque isso não
é bom. Agora, não vai ser fácil. Desse ponto de vista é uma geringonça.
Gerigonça significa uma máquina que você não espera que funcione, uma coisa
mal-amanhada (desajeitada, mal arrumada), não é? Uma coisa que a gente não
espera que as peças se juntem umas com as outras.
A
Geringonça brasileira periga não funcionar?
Exato!
A nossa funcionou muito bem para surpresa de todos. Eu era um apoiante avant la
lettre (desde o início) daquela solução política. E funcionou bem. Cumprimos as
regras europeias do déficit da dívida, cumpriu-se o programa do acordo tripartido,
Funcionou bem. Uma coisa fez aquilo funcionar. É que a probabilidade de aquilo
funcionasse mal era tão widespread (generalizada), a percepção pública, do
presidente então, que era um presidente de direita, que aliás fez tudo o que
pôde para… Primeiro, ele impulsiona o governo com partidos de centro-direita
que é quem ganha as eleições, atenção, o PSD, a lista PSD-CDS. Como havia um
cerco sobre a tal Geringonça, que não era só doméstico, não era só do
presidente, dos mass media (meios de comunicação de massa), que diziam “isso
nunca vai funcionar, isso nunca vai funcionar”… Que era também da Europa,
porque eles (o governo da Geringonça) queriam subir o salário mínimo… Portanto
houve um cerrar de fileiras tendo em conta o cerco externo que havia. Pode ser
que isso também funcione aí.
Os
agentes econômicos têm demonstrado uma certa impaciência com o novo governo,
isso às vezes reflete negativamente na Bolsa de Valores. Qual poderia ser o
papel desses agentes econômicos para o sucesso ou fracasso da frente, na sua
avaliação?
É
óbvio que, com uma ambiência política com esse grau de heterogeneidade, há um
trade off (uma escolha em detrimento de outra) necessário para isso, mesmo que
tudo corra bem. É preciso negociar com muita gente. Eu acho que o presidente, que
é o governo, e a sua aliança política têm que mobilizar, digamos, as
organizações de interesse, o empresariado, mas também os sindicatos. Agora, é
preciso todos têm consciência, o governo, os jornalistas também, fazer em uma
certa pedagogia: se há uma coisa que vai caracterizar essa aliança política,
dada sua complexidade e heterogeneidade, é a lentidão do processo de tomada de
decisão. Por quê? Porque é óbvio, porque tem que negociar com várias pessoas,
tem que fazer compromissos improváveis não é? E portanto tudo isso leva muito
tempo. Agora, naturalmente eu acho o presidente Lula tem que cooptar, entre
aspas, mobilizar, para a defesa da democracia, para a defesa de um país menos
desigual.
Recentemente,
a Polícia impediu a explosão de uma bomba em um caminhão de combustíveis numa
estrada que leva ao aeroporto de Brasília e descobriu explosivos e coletes
balísticos escondidos em um matagal. A Polícia Federal também prendeu pessoas
envolvidas em um quebra-quebra na capital federal. Todos os detidos estão
ligados ao bolsonarismo. Eu queria saber do senhor se esse tom da oposição pode
influenciar na coesão da aliança, se poderia facilitar que a frente ampla se
mantivesse.
O
cerco à Geringonça portuguesa era de uma oposição digamos leal, não é? Isso (o
recurso a ações violentas no Brasil) é uma posição desleal e é terrorismo. Isso
pode funcionar como um” cimento” da Aliança, pode. Agora tem que ver, o Brasil
tem um estado de direito e tem que cumprir as leis. Isso (oposição violenta) é
completamente inaceitável, é terrorismo, lamentável E também não é uma
novidade. É um contágio norte-americano, aquela arruaça estimulada pelo presidente (Donald Trump) no
Capitólio (em 6 de janeiro de 2021) foi uma coisa lamentável e tem um
certo paralelismo (nas ações violentas de bolsonaristas no Brasil). Acho que,
por estranho que pareça, isso pode ser um elemento de coesão (do novo governo).
O
que faltaria para o governo Lula ser uma Geringonça, e essa Geringonça
funcionar? Haveria uma agenda a unir os grupos que o sustentam? Porque há
pontos em comum: meio ambiente, desigualdade, direitos humanos…
O
ambiente é uma coisa muito importante que vocês têm aí, o pulmão do mundo (a
Amazônia), que estava a perigar, não é? Acho que o ambiente, a desigualdade, a
democracia. Acho que defender a democracia… Acho que isso também deve ser um
ponto. Porque, quer dizer, vamos lá: MDB, PSDB… Quer dizer: há uma direita
democrática no Brasil. Embora tenha havido alguns trânsfugas que apoiaram o
Bolsonaro. Mas há uma direita democrática no Brasil. É essa que deve ser cooptada
para essa frente ampla. E depois é uma atitude compromissória de todas as
partes. O não vai ser fácil, vai ser preciso cedências (concessões), de parte a
parte. Ninguém vai ter o seu programa todo aplicado, toda a gente vai ter que
ceder um bocadinho para fazer aproximações. Não vai ser fácil.
Fonte: Estadão
(*) Cientista político português autor de Para lá da ‘Geringonça’
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