Por: Alvair David Silva Junior e André Meyer Albiero são advogados
O
processo de execução, meio judicial disponibilizado ao credor para satisfazer
seu crédito, rege-se, entre outros, pelo princípio da responsabilidade
patrimonial, segundo o qual o devedor "responde com todos os seus
bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as
restrições estabelecidas em lei" (artigo 789 do CPC). À primeira
vista, o dispositivo parece promissor ao credor, sugerindo muitas
possibilidades de constrição contra o patrimônio do devedor; passando o enfoque
à ressalva da parte final da norma, o cenário se torna limitado, o que é
confirmado quando se chega ao rol (não taxativo) dos bens considerados
impenhoráveis, previsto no artigo 833 do CPC.
A
partir dessa proteção, cujo sabido intuito é resguardar o devedor de uma
expropriação que lhe possa deixar à beira da indignidade, mostra-se
interessante — porque de grande relevância
prática — analisar uma limitação em especial, atinente ao salário do
devedor (e seus equivalentes), prelecionada no artigo 833, inciso IV, do
CPC, assim como as relativizações dessa limitação, as quais advêm da própria
legislação ou são acrescentadas pela jurisprudência, em um sinal de esforço
para aproximar o processo da sua finalidade precípua, grosso modo, a satisfação
do direito material da parte.
Com
efeito, o tema é rotineiro no foro, e dinheiro é o bem mais visado em processos
de execução de quantia certa — contando com a preferência legal
(artigo 835, inciso I, do CPC) —, porque é objeto que detém alta
liquidez quando comparado a outros. Cresce, também, o interesse na discussão ao
entorno da constrição do salário, porquanto, no mais das vezes, o devedor não
possui outra expressão patrimonial, senão seu próprio rendimento. Portanto,
convém examinar o tratamento a uma das "restrições estabelecidas em
lei", apontando quando a literalidade da restrição legal poderá ceder, e
alertando, por fim, para um julgamento que poderá legar ao tema mais uma
exceção à regra da impenhorabilidade do salário.
Inicialmente,
tomando em consideração a letra da lei, tem-se que se consideram impenhoráveis
os salários e outras verbas de semelhante caráter (verbi gratia, vencimentos,
subsídios, proventos de aposentadoria etc.). De modo geral, a doutrina explica
que o regime de impenhorabilidades (não só do salário nem só aquele do
artigo 833 do CPC) é um consectário da densificação infraconstitucional da
dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da CF), funcionando
como a garantia de um "mínimo existencial" ao devedor, uma
proteção àquela parte do seu patrimônio sem a qual sua subsistência digna
poderia ficar comprometida.
A
própria lei, no entanto, excepciona a impenhorabilidade que impôs. No que
interessa ao salário, preconiza o §2.º do artigo 833 do CPC que esta verba
(e equiparadas) poderá ser penhorada quando 1) se estiver diante de cobrança de
prestação alimentícia e 2) se tratar de importâncias excedentes a
50 salários-mínimos mensais.
É
fácil perceber o descompasso entre a lei e a realidade, pois se admite a
constrição do que sobejar a 50 salários mínimos, descuidando-se ser este um
patamar muito elevado para o padrão brasileiro. Sensível à falta de
proporcionalidade do calibre legislativo e atenta à pouca utilidade prática que
referida norma teria, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça passou a
permitir mitigações à impenhorabilidade do salário.
Em
2018, a Corte Especial daquele Tribunal, em Embargos de Divergência, sufragou o
entendimento de que "[s]ó se revela necessária, adequada,
proporcional e justificada a impenhorabilidade daquela parte do
patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de sua
dignidade e da de seus dependentes" (verbi gratia STJ, REsp
nº 1.582.475/MG, Corte Especial, relator ministro Benedito Gonçalves,
j. 03.10.2018; g. n.). Não que antes disso já não fosse possível encontrar, em
algumas Turmas, sólidos precedentes em prol desta tese. Porém, parece ter sido
naqueles Embargos que as divergências foram sopesadas e superadas.
O
desfecho obtido atenua uma desproporcional proteção conferida ao devedor.
Naquele julgamento, pontuou-se que "o credor tem direito ao Estado de
Direito, ao acesso à ordem jurídica justa, ao devido processo legal processual
e material. De outro, também o devedor tem direito ao devido processo legal,
que preserve o mínimo existencial e sua dignidade". Outro respaldo de
altura constitucional ao credor parece estar na garantia constitucional
de "razoável duração do processo", porque, data venia, não
adiantaria falar em razoável duração do processo sem se preocupar, também, com
a satisfação de seu objeto, para a qual sua instrumentalidade é vocacionada.
Enfim, há direitos fundamentais em jogo, circunstância que sempre convida a
pensar no postulado da concordância prática, princípio de hermenêutica que
propõe ao intérprete buscar a exegese que permita a coexistência harmônica,
equilibrada, entre os direitos em conflito. Por mais esta perspectiva, o
entendimento que prevaleceu se mostra adequado.
E,
a confirmar que conclusão distinta traria incômoda e desarrazoada consequência,
o relator do voto vencedor observou que, se quaisquer salários fossem
integralmente impenhoráveis, sem olvidar do teto de
50 salários-mínimos, "estar-se-ia chancelando o comportamento de
qualquer pessoa que, sendo servidor público, assalariado ou aposentado, ainda
que fosse muito bem remunerada, gastasse todas as suas rendas e deixasse de
pagar todas as suas dívidas, sem qualquer justificativa".
Como
não poderia ser diferente, não se fixou parâmetros objetivos para distinguir
quando será possível a constrição da remuneração do devedor. Trata-se de
questão casuística, sempre dependente das circunstâncias concretas, que
revelarão se o salário recebido pelo devedor comporta parcial penhora. Em suma,
pode-se dizer que o STJ acabou por admitir uma exceção implícita à
impenhorabilidade do salário quando a penhora de parte da remuneração do
devedor não for capaz de atingir a dignidade ou a subsistência dele e de sua
família, entendimento este que favorece a dinâmica do processo executivo ao
aumentar a possibilidade de se alcançar a realização do direito postulado em
juízo.
Paralelamente,
um outro tema afim será, em breve, tratado em termos pretensamente definitivos
pelo STJ. Como visto, a penhora de salário já é excepcionada, por lei, para o
credor de prestação alimentícia. Discute-se, mais além, se os honorários
advocatícios de sucumbência se incluiriam nesta exceção legal, dado o seu
caráter alimentar.
É
certo que o credor de verbas sucumbenciais, caso se depare com devedor que
receba alta remuneração, já tem à sua disposição a tese de mitigação da
impenhorabilidade do salário, mencionada acima. Todavia, o tema que será
julgado pela Corte, a depender do seu resultado, poderá expandir as suas
possibilidades. Isso, porque, se enquadrado seu crédito na exceção a que alude
o §2º, restará desnecessário, a princípio, investigar se o devedor percebe uma
remuneração avantajada ou não. O debate está pautado no Tema nº 1.153 do
Tribunal.
Vale
adiantar, contudo, que esse mesmo debate já foi travado pela Corte Especial,
mas não sob o rito dos recursos repetitivos. Precisamente, no REsp
nº 1.815.055/SP, em que prevaleceu a compreensão de que o caráter
alimentar dos honorários advocatícios de sucumbência não permite equipará-los,
integralmente, às verbas de natureza alimentícia.
A
diferenciação entre "natureza alimentar" e "natureza
alimentícia" se sustentaria porque esta última expressão estaria
ligada, na história da técnica legislativa brasileira, às obrigações de prestar
alimentos familiares, indenizatórios ou voluntários, envolvendo relações em que
o credor é reconhecidamente vulnerável, aspecto que não acompanharia, por
natureza, o credor de verba alimentar. Entre as diferenças de tratamento legal
destacadas na sobredita decisão, acham-se as possibilidades de, para as verbas
de natureza alimentícia, 1) penhorar bem de família (artigo 3º,
inciso III, Lei nº 8.009/90), 2) decretar a prisão civil (artigo 528,
§3.º, do CPC) e 3) estabelecer rito processual específico (artigos 528 a 533,
ou 911 a 913, todos do CPC, c/c a Lei nº 5.478/68), entre outras que não
são estendidas às que possuam apenas natureza alimentar (verbi gratia, STJ,
REsp nº 1.815.055/SP, Corte Especial, relatora Nancy Andrighi, j. em
03.08.2020).
De
qualquer forma, a nova apreciação tende a conferir maior acatamento à solução
que vier, que, tratada em sede de recurso repetitivo, tornarão (ao menos em
tese) menos frequentes decisões com entendimentos díspares por parte das
instâncias ordinárias, considerando o disposto no artigo 927,
inciso III, do CPC.
Por
fim, a despeito do julgamento realizado em 2020, interessou comentar o tema
outra vez o fato de que aquele resultado se deu por apertada maioria (7 a 6) e
sob ausência de um dos integrantes da Corte, detalhes que, talvez, indiquem
insegurança quanto ao que virá.
Artigo publicado, originalmente, pela Revista Consultor Jurídico (link)
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