Por: Sérgio Rodas, correspondente da revista Consultor Jurídico no RJ
O
ex-juiz Sergio Moro recentemente filiou-se ao Podemos e declarou ter a intenção
de se candidatar a presidente nas eleições de 2022. Para o jornalista e
advogado norte-americano Glenn Greenwald, que coordenou, no site The
Intercept Brasil, a série de reportagens conhecida como vaza jato, Moro é mais
perigoso para a democracia brasileira do que o presidente Jair Bolsonaro (PL).
Isso porque, se eleito, o ex-juiz teria menos resistência do establishment do
que Bolsonaro, o que lhe permitiria concretizar com mais eficácia os seus
projetos, decorrentes de uma "mentalidade completamente autoritária".
A
vaza jato, que teve início em junho de 2019, revelou mensagens entre Moro e
procuradores da operação "lava jato", demonstrando que eles tinham
uma proximidade indevida e burlaram as leis em diversos momentos para atingir
determinados objetivos. Na visão de Greenwald, a série de reportagens criou o
clima na sociedade que permitiu que o Supremo Tribunal Federal passasse a
reverter decisões de Moro e do consórcio de Curitiba, levando à libertação do
ex-presidente Lula (PT) e, posteriormente, à anulação de suas condenações e
restabelecimento de seus direitos políticos.
Segundo
o jornalista, a "lava jato" foi a força mais poderosa no Brasil
de 2014 a 2018. Nesse período, diz, Moro e procuradores da República — que não
foram eleitos pela população — manipularam o processo democrático e o mundo
político. O principal exemplo desse manuseio indevido do jogo político é a
divulgação ilegal, por Moro, de conversas entre a então presidente Dilma
Rousseff (PT) e Lula. Sem essa manobra ilícita, a presidente não teria sofrido impeachment,
afirma Greenwald, citando análise do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ).
O
jornalista também aponta que os EUA tinham interesse na "lava
jato" e na quebra das empreiteiras brasileiras — tanto que estavam
constantemente dialogando com procuradores, quase lhes dando ordens. E
"Sergio Moro sempre estava bem preocupado com o que os EUA estavam
pensando", avalia.
Em
entrevista à ConJur, Glenn Greenwald também criticou a atuação da imprensa
brasileira na "lava jato", alertou para os riscos da censura imposta
por grandes empresas de tecnologia, como Google, Facebook e Twitter, e criticou
a atuação do STF nos inquéritos das fake news e dos atos
antidemocráticos.
Leia
a entrevista:
ConJur — O senhor, com Edward Snowden, revelou que a National Security Agency (NSA) vinha interceptando as comunicações da então presidente Dilma Rousseff e da Petrobras. Na opinião do senhor, esse foi o preâmbulo do petrolão, que se tornaria a "lava jato"?
Gleen Greenwald — A gente só pode fazer especulações sobre isso. Não
existe evidência concreta que os EUA que começaram, impulsionaram a
investigação da "lava jato". Entrevistei a ex-presidente Dilma
Rousseff — foi a primeira entrevista depois que o Senado aprovou a
abertura do processo de impeachment dela — e perguntei exatamente
isso, se acreditava que a Central Intelligence Agency (CIA), a NSA, o governo
dos EUA teve um papel importante no impeachment. Ela disse que não:
"Acredito que isso começou a partir de facções domésticas. Mas é muito
difícil acontecerem coisas importantes no Brasil sem pelo menos a aprovação dos
EUA". Mas foi interessante que, durante o impeachment, alguns dos
senadores mais importantes do PSDB e de outros partidos de direita, que estavam
liderando o processo, estavam viajando frequentemente do Brasil para
Washington, D.C., para encontrar pessoas cruciais do Departamento de Estado, do
Departamento de Segurança e das Relações do Exteriores dos EUA.
Se
me perguntassem, nos anos seguintes ao golpe de 1964, se os EUA tinham tido
participação importante no evento, responderia que acreditava que sim, mas que
não tinha provas. Porque essas provas não apareceram até 1969 ou 1975. Então é
interessante que a NSA estava espionando Dilma e a Petrobras e é possível,
obviamente, que isso pode ter tido um papel na "lava jato" e na
investigação da corrupção na Petrobras.
Por
outro lado, os EUA estavam espionando qualquer instituição que tinha poder,
influência econômica. Não era só a Petrobras ou só Dilma. Então é difícil
afirmar que esse foi o início da "lava jato", mas obviamente ainda
não existem provas conclusivas sobre essa questão.
ConJur — Há quem afirme que as empreiteiras brasileiras se tornaram alvo dos EUA por roubarem mercado de empresas norte-americanas na África e no Oriente Médio. A "lava jato" buscou quebrar essas companhias e abrir um mercado para os EUA ou isso é teoria da conspiração?
Glenn Greenwald — Não é teoria da conspiração. Tem muitas evidências
concretas. As mensagens da vaza jato mostram que o tempo todo os procuradores
da "lava jato" estavam trabalhando junto com os EUA,
conspirando, planejando, recebendo quase ordens. Porque o governo
norte-americano tinha muito interesse na corrupção da Petrobras. As
mensagens deixam claro que a relação dos EUA com a força-tarefa brasileira era
muito mais próxima do que as pessoas sabiam. E várias vezes as conversas eram
sobre a questão do poder, como se pode transferir onde o poder estava para
outros países e outros mercados. Não há dúvida alguma que as pessoas que
participaram dessas conversas tinham outros objetivos, muito além da questão da
corrupção no Brasil.
ConJur — Na visão do senhor, os procuradores do consórcio de Curitiba e o ex-juiz Sergio Moro tinham consciência desse interesse dos EUA? Ou eles só pensavam que era uma ajuda a mais na suposta luta contra a corrupção?
Glenn Greenwald — É difícil saber exatamente o que pessoas que estão
pensando, quais são seus motivos. Geralmente são muito complexos, misturados.
Mas fiquei meses lendo as conversas entre Moro e procuradores. Quando as
pessoas falam no privado, a gente pode entender a verdade. E eu penso que Moro
sempre estava bem preocupado com o que os EUA estavam pensando. A primeira
coisa que ele fez depois que saiu do governo do Bolsonaro foi correr para onde?
Para o lado dos EUA [ao ingressar na consultoria norte-americana Alvarez &
Marsal]. Ele sempre tinha essa conexão com os EUA, na minha opinião, na forma
clássica do complexo de vira-lata. Sempre dependendo da aprovação de
Washington, sempre pensando que o que é importante é o que os EUA estão
fazendo. Ele estava tentando copiar os métodos de lá. Tudo o que ele levou para
o "pacote anticrime" foi baseado no modelo deles, com plea
bargain, com tudo isso. O tempo todo Moro estava bem preocupado com a visão dos
EUA sobre o trabalho dele.
ConJur — Há uma tendência a padronizar as leis anticorrupção no mundo, seguindo o modelo dos EUA. Mas esse modelo protege os interesses econômicos deles. O Brasil vem importando diversos mecanismos do modelo anticorrupção dos EUA, como a colaboração premiada. Essas medidas atendem os interesses brasileiros? Ou o Brasil está simplesmente copiando as medidas sem refletir sobre a realidade do país?
Glenn Greenwald — O argumento do combate à corrupção sempre foi usado
pelo Departamento de Estado dos EUA para promover golpes e mudar governos. O
golpe de 1964 foi justificado no Brasil e em veículos dos EUA, como The
New York Times e Time, como uma luta contra a corrupção, apontando
que o governo [João Goulart] era muito corrupto. O modelo anticorrupção dos EUA
tem o objetivo de proteger a classe alta e transferir poder de setores
democráticos para procuradores e o sistema judicial. Por exemplo, depois da
crise financeira em 2008, nenhum executivo de Wall Street foi processado
criminalmente pelo governo Obama, porque o democrata tinha boas relações, doou
muito dinheiro para o partido.
Esses
mecanismos, como o plea bargain, são usados para proteger pessoas quando
elas são pegas cometendo atos graves de corrupção. Mas o sistema não quer
prendê-las, então oferecem um acordo, um tipo de contra-ataque: "Você é
culpado, mas não vai receber nenhuma punição. Vai ficar 60 dias em uma prisão
mais confortável, depois tem todos os seus direitos". É usado para
proteger aqueles que eles querem proteger. Por outro lado, quando tem competição
para o sistema econômico, eles podem usar esse mesmo sistema para punir e
destruir qualquer pessoa, qualquer empresa que esteja competindo. Por exemplo,
há pessoas querendo criar bitcoin, que são vistas como ameaças para o establishment.
O
fato de Moro ser quase obsessivo com essa tentativa de copiar os sistemas dos
EUA tem como objetivo transferir, concretizar o poder nas mãos de integrantes
do Ministério Público e do Judiciário em vez do setor político, porque ele
acredita que está protegendo o combate à corrupção.
ConJur — Moro e Deltan Dallagnol viraram, em certo momento, quase heróis nacionais. Já houve algo parecido nos EUA? Isso é possível no sistema norte-americano?
Glenn Greenwald — O único caso parecido que consigo lembrar é o de
Robert Mueller. Em 2016, Donald Trump venceu a eleição para presidente dos EUA.
O establishment ficou completamente abalado com isso, não
sabia o que deveria fazer. Mueller, que tinha sido diretor do FBI,
foi nomeado procurador especial para investigar se a Rússia havia interferido
na eleição. E passaram a tratá-lo como um super-herói, um exemplo de ética, um
homem que nunca faria nada de errado. Isso apesar do fato de que ele foi parte
do governo George W. Bush, que criou mentiras para justificar a invasão do
Iraque, e que ele depôs no Congresso afirmando ter evidências de que [o
ex-presidente do Iraque] Saddam Hussein tinha armas nucleares e biológicas.
Essa anomalia foi ignorada, e Mueller foi apontado como um herói, como a pessoa
que iria salvar a democracia. Afinal, o povo havia tomado uma decisão errada ao
votar em Trump. Exatamente como muitas pessoas no Brasil acreditavam que o povo
brasileiro fez uma decisão errada quando reelegeu Dilma em 2014 e depois
quiseram tentar cancelar a eleição usando um juiz que foi pintado como um
super-herói na imagem criada pela mídia. Isso para mim é muito parecido com o
que aconteceu nos EUA com o Robert Mueller, que foi "criado" e
enviado para destruir Trump.
Tanto
nos EUA como no Brasil, foram tentativas antidemocráticas, porque nem Moro nem
Mueller foram eleitos. Mas o establishment queria que eles salvassem
o país de uma decisão democrática. Isso é uma tática muito perigosa, usar as
leis e a narrativa sobre corrupção para reverter o resultado de uma eleição e
retirar o direito do povo de decidir quem devem ser os líderes do governo.
ConJur — Qual foi o impacto da "lava jato" para o Brasil?
Glenn Greenwald — A operação foi a força mais poderosa, mais
importante, mais impactante no Brasil de 2014 a 2018. Em uma entrevista que
concedeu à Jovem Pan em 2019, o ex-presidente da Câmara dos Deputados
Rodrigo Maia (DEM-RJ) lembrou que a ideia do impeachment de Dilma não
era viável. Disse que isso se tornou não só uma possibilidade, mas uma
probabilidade, quando Moro divulgou as conversas entre Dilma e Lula, de forma
ilegal, conforme decisão do STF, para criar uma nuvem de escândalo em cima de
Dilma, com Jornal Nacional, com tudo isso. Maia disse que, sem essa ação
de Moro, o impeachment nunca aconteceria, que seria impossível
imaginar que Lula ou Dilma sofreriam impeachment sem isso.
O
tempo todo a "lava jato" estava manipulando o processo
democrático e o mundo político. Esse processo foi liderado por um juiz e
procuradores que nunca foram eleitos para nada. Um juiz de primeira instância,
que nem passou por sabatina no Senado, como pelo menos acontece com os
ministros do STF.
Moro
e Dallagnol tinham o poder na mão para destruir a reputação de qualquer pessoa
que eles quisessem, usando vazamentos. E sempre negavam veementemente que eram
os responsáveis pelos vazamentos. Mas era óbvio que alguém estava vazando. E
a Globo ficava o tempo todo gritando: "Tal pessoa é acusada
de receber propina para outra pessoa na delação premiada de X". Isso
destruiu reputações. E, muitas vezes, a pessoa nunca foi processada. Até hoje,
se você mencionar o nome do Rodrigo Maia, vão falar: "Ah, o Botafogo"
[como ele supostamente era chamado em planilhas de corrupção da Odebrecht],
brincando com o seu nome. Ele nunca foi processado por nenhum crime, mas sua
reputação foi manchada por causa desse tipo de vazamento, que é ilegal.
Na
vaza jato, conseguimos mostrar que Dallagnol estava vazando exatamente o que
negava vazar com o objetivo de pressionar pessoas a delatar, de intimidar
pessoas. A "lava jato" tinha esse poder. E é um poder muito
perigoso. É um abuso, um crime vazar informações da investigação.
Então
a "lava jato" estava controlando, manipulando o processo
político. E todo mundo tinha medo de desafiá-la, mesmo o STF. Moro estava
ultrapassando os limites de ética, os limites legais, mas o Supremo sabia que
Moro estava popular demais. Ninguém conseguiu desafiá-lo. Conseguimos mostrar
que a imagem de Moro era uma fraude. Três meses depois, o STF começou a tomar
decisões contra Moro e libertou Lula da prisão. O ex-juiz usou essa imagem,
esse poder absoluto que tinha para comandar a facção política mais poderosa do
Brasil.
ConJur — A imprensa comprou demais o discurso da "lava jato"? Acredita que foi pouco crítica?
Glenn Greenwald — Há um vilão principal na história da "lava
jato", e é a mídia brasileira. Foi ela, principalmente a Globo, mas
também Veja, Estadão e Folha, que criou a imagem de herói
de Moro. Foi uma violação do dever jornalístico de proibir qualquer político de
não ser questionado. Isso é sempre errado para jornalistas, seja com Moro ou
Lula. Quando o jornalismo cria uma parede de proteção a um político, e Moro era
um oficial do Estado, é sempre uma violação da obrigação jornalística.
Quando
fizemos parcerias jornalísticas na vaza jato com Veja e Folha, a
revista semanal publicou uma carta aos leitores quase confessando que eles
fizeram isso, mostrando seis ou sete capas da revista que mostraram Moro como
um herói. Admitiram que erraram no sentido em que nunca questionaram o que o
ex-juiz estava fazendo, e agora eles tinham na mão provas mostrando, nas
palavras da Veja, que Moro cometeu crimes. A Folha publicou
entrevista com [o diretor de Redação] Sérgio Dávila na qual ele admitiu que foi
um erro enorme fazer o que fizeram, que muitas vezes o jornal botou na manchete
principal: "Político X é acusado de receber propinas com vazamento da
'lava jato'" e, não apareceram provas disso. A Folha nunca
publicou uma manchete para falar: "Não tem nenhuma prova que esse
político, cuja reputação nós destruímos, é culpado". Ele disse que vai
aprender, que todo mundo no mundo jornalístico brasileiro deveria aprender que
não se pode fazer isso de novo.
ConJur — Qual foi o impacto da vaza jato nas recentes derrotas da "lava jato" nos tribunais, especialmente nas decisões que determinaram a libertação do ex-presidente Lula e a anulação de suas condenações?
Glenn Greenwald — É óbvio que teve um impacto enorme nas decisões.
Quantas derrotas Lula sofreu no STF e outros tribunais antes da vaza jato? De
repente, três meses depois de começamos a reportar a vaza jato, ele é solto. A
decisão não foi baseada tecnicamente na questão de Moro ter feito coisas
erradas, e sim impediu que alguém fosse preso após segunda instância. Mas foi o
clima criado pela vaza jato, que deixou o STF com coragem para tomar essa
decisão. Sem dúvida nenhuma, eles não conseguiriam tomar uma decisão dessas.
Estavam sendo ameaçados por um militar [o ex-comandante do Exército Eduardo
Villas Bôas], que disse que eles não deveriam soltar Lula mesmo se acreditassem
que era a decisão certa. E de repente o clima mudou.
Mesmo
os aliados jornalísticos de Moro passaram a falar que ele deveria renunciar [ao
cargo de ministro da Justiça]. A Veja publicou um editorial acusando
Moro de cometer crimes, o que é uma coisa incrível. O Estadão, que não era
nosso parceiro jornalístico, também publicou um editorial falando que Dallagnol
deveria ser demitido e Moro deveria renunciar ao cargo público até tudo ser
esclarecido. Então, esse foi o clima que permitiu ao STF começar a desafiar
Moro.
A
decisão de que Moro era parcial, que anulou as condenações de Lula,
restabelecendo seus direitos políticos, foi a conclusão desse processo. Mas o
caso dele nunca deveria ter ficado com Moro, porque não era relacionado à
Petrobras ou à "lava jato". Deveria estar nos tribunais de São Paulo.
No primeiro dia da vaza jato, publicamos três artigos. Um deles era sobre como
Dallagnol sabia que as ligações que permitiam que o caso ficasse com Moro eram
muito fracas, mas queriam fazer isso porque sabiam que o então juiz era muito
favorável a condenar Lula. E Moro fez isso sem provas. O advogado do Lula
estava afirmando havia três anos que o magistrado não tinha capacidade de
julgar esse caso, e o STF estava rejeitando as alegações. De repente, dois anos
depois da vaza jato, Fachin decidiu que ele tinha razão. Há pessoas que
acreditam que Fachin fez isso para evitar uma decisão mais ampla sobre o fato
de que Moro era parcial, o que aconteceu depois. Mas isso mostra como o clima
mudou completamente depois da vaza jato.
ConJur — As mensagens reveladas pela vaza jato mostram uma proximidade indevida entre Moro e os procuradores. Em sua opinião, os brasileiros têm consciência da necessidade de preservação da imparcialidade do Ministério Público e do Judiciário e do respeito às formalidades e direitos dos acusados? Ou acreditam que vale tudo em uma suposta luta contra a corrupção?
Glenn Greenwald — Quando estava fazendo a reportagem do Snowden,
sabia que a minha obrigação como jornalista não era só divulgar a informação,
mas também explicar por que aquilo era importante. O jornalista tem a obrigação
de explicar para o público por que eles deveriam se importar com essas
revelações. Porque sabia que tinha muitas pessoas pensando: "Olha, eu não
sou pedófilo, não sou bandido, então, por que eu deveria me importar se o
governo está lendo meus e-mails?". E minha obrigação era para explicar por
que isso é tão perigoso.
Na
vaza jato, explicar por que é errado um juiz colaborar com os promotores,
mesmo se o resultado for justo, para punir corruptos, é uma questão que
parece um pouco técnica, mas que tem grande importância para o sistema. Eu
disse muitas vezes: "Imagine que você é acusado de crimes graves, que têm
o potencial para mandar você para a prisão pelo resto da sua vida ou pelos
próximos 20 anos. A única coisa que você vai querer nessa situação é saber que
a pessoa que tem o poder de decidir se você é culpado ou não é imparcial. E se
você soubesse, depois da condenação, que o juiz que decidiu que você é culpado
e mandou você para a prisão por 10 ou 15 anos estava em segredo, nas sombras, o
tempo todo conspirando com os promotores? Então, esquece o que você acha sobre
Moro e Lula, se ele é corrupto ou não. A questão crucial para a sociedade é ter
um processo justo. E o poder do juiz é tão extremo — ele pode tirar
sua liberdade, mandar executar a sua casa — que com esse poder vêm muitas
responsabilidades e limites. O juiz tem que obedecer os limites para o poder
ser válido".
Então
pode parecer uma tecnicalidade, mas na realidade é fundamental para o sistema
funcionar de forma justa. Se você me perguntasse se acredito que o público
entende isso agora, falaria que talvez não o público todo, mas tem muitas
pesquisas que mostraram que a vaza jato teve um impacto na perspectiva do povo
sobre Moro, sobre a "lava jato" e sobre Lula. O ex-presidente
está liderando as pesquisas eleitorais por 20, 25 pontos. E em 2018, o
antipetismo era muito alto. Isso mostra que muitas pessoas mudaram como pensam
essas questões.
ConJur — Como avalia a candidatura de Moro a presidente?
Glenn Greenwald — Depois da vitória de Bolsonaro em 2018, disse que
era quase impossível falar que um candidato não tem chance de ganhar. Se o
atual presidente conseguiu ser eleito, quem não conseguiria? Então nunca
falaria que Moro ou alguma outra pessoa não tem chance. Mas ele é um candidato
muito fraco. O primeiro motivo é que nunca fez política. Não sabe como fazer
campanhas. Não é nem um pouco carismático, não tem capacidade de se comunicar
com o povo. Tudo o que políticos precisam para ter sucesso nas eleições, ele
não tem.
O
segundo aspecto é que ele é um candidato de classe média. É quase impossível
ver a maioria do povo brasileiro, os pobres, as pessoas que estão sofrendo por
causa da depravação econômica, da desigualdade, se conectando com Moro. Ele é o
candidato do establishment, do setor financeiro, da Globo. Mas é muito
difícil ver Moro inspirando a grande maioria dos brasileiros. Além disso, que
espaço político Moro irá ocupar? Lula domina a esquerda, Bolsonaro, a direita.
O centro-esquerda está sendo ocupado por Ciro Gomes, o centro-direita, por João
Dória. Os bolsonaristas odeiam Moro pelo que ele fez quando saiu do governo.
Obviamente a esquerda e a centro-esquerda consideram Moro uma figura
completamente corrupta. Então, o espaço que ele pode ocupar é muito pequeno. O
teto dele é 12%, talvez 15%, algo que nunca seria suficiente nem para chegar ao
segundo turno.
ConJur — Como o senhor compara Moro a Bolsonaro, como candidatos e políticos em geral?
Glenn Greenwald — Não há muita diferença entre Moro e Bolsonaro. É
óbvio que Moro estava apoiando Bolsonaro na eleição de 2018, não só no segundo
turno, mas também no primeiro. Era o candidato de Moro, a mulher dele
[Rosângela Moro] estava mais ou menos abertamente apoiando [Bolsonaro], o que
não necessariamente significa que o então juiz também estava. Mas é muito
improvável que a mulher de uma figura pública como Moro apoiaria Bolsonaro se o
marido também não o estivesse apoiando. Na questão da ideologia, ele
estava bem confortável no governo nos primeiros 18 meses. Poucas vezes ele
criticou o governo. Começou a ter alguma diferença na Covid-19, quando Moro
começou a vazar que ele não estava aprovando como a epidemia estava sendo
gerenciada. Mas isso não é uma questão de ideologia, é mais de competência. As
diferenças de ideologia entre os dois são poucas.
Moro
é um perigo mais grave para a democracia do que Bolsonaro. Não necessariamente
porque é uma pessoa pior, mais autoritária. Mas tem uma mentalidade
completamente autoritária. Seja porque acredita que deveria ter o poder
absoluto, seja porque acredita que é uma pessoa tão nobre e tão ética que não
precisa de limites em seu poder, seja porque os motivos dele sempre são
completamente inquestionáveis. Bolsonaro é um presidente mais ou menos fraco,
tem muita resistência de vários setores, da mídia, do Congresso, do povo, dos
empresários. A única coisa que Bolsonaro conseguiu fazer até hoje foi proteger
seus filhos de serem presos, que é a sua prioridade agora. Mas, das coisas que
ele queria fazer, não conseguiu fazer nada. Se tornou um escravo do centrão,
que agora está mandando em tudo. Por causa da resistência em setores do establishment ao
comportamento de Bolsonaro, ele é uma vergonha para a elite. E isso Moro não
seria. Ficaria quase sem resistência, só na esquerda, e poderia fazer muito
mais do que Bolsonaro pôde fazer. A pessoa que mais prejudicou a democracia
brasileira nos últimos cinco ou seis anos não é Bolsonaro, mas Sergio Moro. E a
pessoa que é o maior perigo para a democracia brasileira agora não é Jair
Bolsonaro, mas Sergio Moro.
ConJur — O senhor pediu demissão de The Intercept, site que ajudou a fundar, argumentando que houve censura do veículo a um texto com críticas ao então candidato democrata à Presidência dos EUA, Joe Biden. Como avalia a liberdade de imprensa nos EUA e no Brasil?
Glenn Greenwald — Estamos conversando no dia em que saiu a decisão do
tribunal britânico aceitando o pedido da extradição de Julian Assange para os
EUA. Ela foi baseada na teoria de que Assange cometeu um crime ao publicar,
junto com grandes jornais, como The New York Times, The Guardian e El
País, documentos secretos e genuínos que mostraram crimes graves de parte do
governo dos EUA, mas também do governo britânico e de seus aliados, e proteger
sua fonte. Assange foi além do papel de jornalista. Não apenas recebeu os
documentos relevantes e os publicou, mas protegeu a fonte. Em maio de 2019, eu
publiquei um artigo no The Washington Post dizendo que esse processo
que o governo Trump moveu contra Assange é muito grave e uma ameaça muito séria
à liberdade da imprensa. O que eles estão alegando, acusando Assange de fazer
com sua fonte, é a mesma coisa que jornalistas do mundo todo fazem todos os
dias com as suas fontes. O jornalista nunca recebe documentos de forma passiva.
Sempre encoraja sua fonte para lhe dar mais informações. O jornalista tem não
só o direito, mas o dever de proteger suas fontes. Ironicamente, em maio de
2019, quando publiquei esse artigo, foi o mesmo mês que eu comecei a trabalhar
com a minha fonte da vaza jato. Oito meses depois, o Ministério Público e
procuradores aliados de Moro processaram não só as seis fontes, mas também
tentaram me processar criminalmente usando a mesma teoria que os EUA estava
usando contra Assange — que eu não recebi passivamente os documentos da minha
fonte, mas tentei ajudar a minha fonte a evitar ser presa. E, quando fiz isso,
me tornei parte da conspiração criminal, por causa disso, todos os crimes que
eles cometeram podem ser atribuídos a mim também. Essa teoria, que está
ganhando força em muitos países, é uma ameaça muito grave para o jornalismo. Se
o governo dos EUA criminalizar esse modelo, estará criminalizando o jornalismo
investigativo. E o fato de que eu fui protegido pelo STF não significa que esse
risco não é muito elevado.
Outro
risco à liberdade de imprensa é o papel das grandes empresas de tecnologia. O
fato é que todos nós estamos dependendo agora do Twitter, do Facebook, do
Google, do YouTube para disseminar nossas reportagens. Ao mesmo tempo, essas
empresas estão censurando com muito mais agressividade, deixando o jornalismo
muito restrito. Não conseguimos ultrapassar os limites ao jornalismo impostos
não por governos democráticos, mas por empresas, que não são eleitas
democraticamente. É uma ameaça muito grande.
ConJur — As redes sociais bloquearam Trump. Medidas semelhantes foram tomadas no Brasil. Bolsonaro chegou a ter publicações suspensas sob a alegação de falsidade de informações sobre a Covid-19. Tais bloqueios são medidas legítimas para combater a desinformação ou violam a liberdade de expressão?
Glenn Greenwald — É assustador que, nos EUA, a centro-esquerda e
partes da esquerda aplaudiram Facebook, Google e Twitter por proibir Trump de
usar as redes sociais. No Brasil, grande parte da esquerda apoia e aplaude as
grandes empresas do Silicon Valley quando proíbem Bolsonaro de se manifestar em
nome de combater a desinformação.
A
esquerda brasileira tem que entender que, nos EUA, Twitter e Facebook proibiram
Trump de usar as plataformas quando ele foi presidente eleito do país mais
poderoso do mundo. Os censores não eram pessoas de direita. Quem foi contra
isso foi o presidente da França [Emmanuel Macron], o presidente do México
[López Obrador], que obviamente não são amigos de Trump, muito pelo contrário,
mas já entenderam que, se o discurso político está sendo policiado, controlado
ou limitado por essas grandes empresas que não podemos controlar
democraticamente, elas vão ter poder mais do que governos eleitos, do que
países democráticos. Mesmo um presidente eleito, como Trump e Bolsonaro, pode
ser silenciado pelas empresas. É um perigo muito grande.
Em
que instituições confiamos para decidir o que é verdadeiro e o que é falso?
Obviamente é preciso ouvir especialistas em epidemiologia e ciência na questão
da Covid-19, especialistas em eleições para saber se uma eleição sofreu fraude.
Mas essas grandes empresas não podem proibir dissidências. Tudo precisa ser
questionado. E qualquer pessoa que aplaude um regime de censura é um
autoritário perigoso.
ConJur — Como avalia os inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, conduzidos pelo STF? Nessas investigações, a corte mandou prender, por exemplo, o deputado Daniel Silveira, o blogueiro Allan dos Santos e o caminhoneiro Zé Trovão. Em todos os casos, as ordens de prisão foram expedidas com base em declarações ofensivas ou ameaças às instituições e a integrantes do tribunal
Glenn Greenwald — Os alvos dessas investigações são as pessoas que eu
mais odeio no mundo. Processei [o blogueiro bolsonarista] Oswaldo Eustáquio
quando ele mentiu sobre a minha mãe, negando que ela tinha câncer terminal —
três meses depois ela faleceu. Isso provocou muitos ataques contra minha mãe
nas redes sociais dela, quando estava morrendo de câncer. Ele é um lixo. Acusou
eu e David [Miranda, deputado federal pelo Psol-RJ e marido de Greenwald] de
molestarmos nossos filhos, abusarmos deles sexualmente. Não tem uma pessoa que
eu odeie mais do que Eustáquio. Allan dos Santos mentiu sobre nós muitas vezes,
espalhando e publicando fake news. Daniel Silveira é um psicopata. Quando
fui depor no Congresso sobre a vaza jato, ele sentou a uns 15 metros de
distância de mim e ficou me olhando com esse rosto de violência, de ódio, de que
queria me matar. Se conseguisse me matar na época, me mataria, sem dúvida
nenhuma.
Essas
três figuras são alvo dos processos do STF. Apesar de serem as pessoas que
eu mais odeio no mundo, temos que avaliar os processos da perspectiva do
precedente que está sendo criado. Se Silveira cometeu crimes, eles deveriam
processá-lo, levar o caso para o tribunal, apresentar provas, mostrando que é
culpado, garantir os direitos que a Constituição lhe atribui e lhe conferir um
processo justo para decidir se é culpado. Se for, deverá ser punido como
qualquer um.
O
STF não está fazendo isso. Onde está o processo de Daniel Silveira? Onde as
provas estão sendo apresentadas por Alexandre de Moraes e outras pessoas?
Alexandre é vítima dos crimes, porque o estão atacando e ameaçando. É a
polícia, investigando os crimes, e é o juiz, mandando a polícia fazer busca e
apreensão e condenando-os sem julgamento. Isso é obviamente perigoso. Imagine
que um ministro do STF — agora tem dois indicados por Jair Bolsonaro [Nunes
Marques e André Mendonça] — decida copiar esses processos para perseguir
blogueiros da esquerda, como os do Brasil 247, do Diário do Centro do
Mundo ou qualquer outro financiado pelo PT e depois ordene a prisão de um
deputado do PT e do pessoal do PCdoB, passando a perseguir ativistas de
esquerda? Não é difícil entender por que isso é tão perigoso. O foro
privilegiado foi criado exatamente porque a ditadura militar estava fazendo
isso o tempo todo. Quando tinha um deputado que fosse um pouco contra o regime,
o tiravam do cargo e o prendiam, sem julgamento. Isso é um poder perigoso. Se a
pergunta fosse se Oswaldo Eustáquio, se Daniel Silveira, se Allan dos Santos
deveriam ser presos, eu diria que talvez. Mas, para isso, é preciso ter um
processo, com direitos, com provas, com proteções que todos eles deveriam ter
antes de ser presos. E isso não está acontecendo. Estão criando um precedente
muito perigoso.
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