A
interdisciplinaridade é uma forte característica do Direito da Concorrência,
que frequentemente utiliza conceitos da ciência econômica na análise das
infrações à ordem econômica. Além disso, também são incorporados rotineiramente
às análises antitruste diversos conceitos e normas oriundos de outros ramos do
Direito, como o Empresarial e o Regulatório.
Nos
últimos anos, porém, novas relações vêm sendo travadas entre o Direito da
Concorrência e áreas que, à primeira vista, poderiam parecer não ter uma conexão
tão clara. É este o caso do encontro do Direito da Concorrência com o Direito
do Trabalho, que até pouco tempo, ao menos em solo brasileiro, não costumavam
caminhar juntos.
Essa
relação entre o Direito Concorrencial e o Direito Trabalhista vem sendo cada
vez mais explorada por autoridades de defesa da concorrência de diversas
jurisdições, como a do Japão, que estuda o tema desde 2015 [1], a dos Estados
Unidos, que já julgou empresas por condutas relativas ao mercado de trabalho em
algumas oportunidades na última década [2] e
publicou, em 2016, o "Antitrust Guidance for HR Professionals" ("Guia
Antitruste para Profissionais de Recursos Humanos") do Department
of Justice (DOJ) e do Federal Trade Commission (FTC) [3], além das
autoridades de Canadá, França, Espanha, Hong Kong e, mais recentemente, do
Brasil, com a publicação de documento para a OCDE intitulado de "Competition
Issues in Labour Markets" [4], em 2019.
Como
justificativas para a ampliação dessa discussão nos âmbitos regulatório e
jurídico podem ser citadas a verificação do crescimento da concentração dos
empregadores e do mercado de trabalho, além da estagnação dos salários de
trabalhadores de diversos setores [5]. Diante desses
fatos e do desenvolvimento dos estudos sobre o tema, o Direito Antitruste
passou a considerar que alguns empregadores têm condições de diminuir e de
estagnar os salários e benefícios de seus empregados por meio da utilização de
cláusulas de não concorrência, pelo poder de monopsônio na compra de
mão-de-obra e também por meio de acordos anticompetitivos entre
empregadores que criam artificialmente o poder de monopsônio,
prejudicando, assim, a concorrência no mercado de trabalho, os empregados e os
consumidores e, consequentemente, podendo infringir a legislação que protege a
ordem econômica [6].
No
que diz respeito às condutas colusivas entre empregadores no mercado de
trabalho, destacam-se: 1) os cartéis para fixação de salários e remuneração (wage-fixing
cartels), 2) as trocas de informações sensíveis entre concorrentes sobre termos
e condições de trabalho; e 3) os acordos de não contratação de trabalhadores
(ou acordos de não aliciamento de trabalhadores, em inglês, no-poach,
non-soliciting ou ainda cold calling agreements).
As
trocas de informações comercialmente sensíveis entre concorrentes sobre termos
e condições de trabalho, diferentemente dos acordos citados acima, deverão ser
analisadas pela regra da razão [7], nos termos do
já mencionado "Guia Antitruste para Profissionais de Recursos
Humanos" do DOJ/FTC, tendência que deve ser observada também pela
autoridade antitruste brasileira. Dessa forma, as trocas de informação serão
consideradas ilícitas somente quando resultarem na diminuição do salário e
remuneração ou causarem outros prejuízos aos trabalhadores, sem benefícios
líquidos positivos ou ao menos neutros em decorrência dessa prática.
Já
os cartéis de fixação de remuneração, ainda de acordo com o supracitado guia,
são acordos firmados entre empregadores para fixar os salários e benefícios dos
empregados, mesmo que dentro de uma faixa salarial e não por meio da definição
de um valor exato [8]. Esse tipo de
acordo gera, entre outros danos, o controle do preço da mão-de-obra por parte
dos empregadores envolvidos no conluio. Destacamos que, assim como ocorre com
cartéis em outros mercados, o guia do DOJ/FTC determina que os wage-fixing
cartels também são ilícitos por objeto.
No
Brasil, esse tipo de conduta também deverá ser analisada dessa forma, por haver
um nítido acordo colusivo entre concorrentes para estabelecer preços de um
importante insumo de seus produtos: a mão-de-obra. Isso ocorrerá mesmo quando o
preço do produto em si (aquele comercializado pelas empresas envolvidas no
conluio) não seja objeto das negociações do cartel, tal qual ocorreria, por
exemplo, em um cartel de compras, como no caso do "cartel das
graxarias" (ou "cartel dos resíduos animais") [9], no qual o
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) está apurando a conduta
colusiva de empresas na compra desses insumos.
Já
os acordos de no poach são aqueles celebrados entre empregadores que
concorrem pelo mesmo mercado de trabalho e cujo objetivo é eliminar a competição
por funcionários. Aqui, também haverá violação da lei antitruste mesmo quando
os empregadores não concorram no mesmo mercado de produtos ou serviços,
bastando que o acordo resulte em diminuição da remuneração e da mobilidade dos
empregados. Ou seja, ainda que tais agente econômicos não atuem no mesmo
mercado de produtos/serviços, se o insumo mão-de-obra estiver inserido em um
mesmo mercado de trabalho, poderá haver violação de natureza concorrencial.
Cabe
ressaltar que tais acordos podem ser lícitos e muitas vezes impostos pela
autoridade concorrencial como mecanismo temporário de proteção de ativos a
serem desinvestidos em um pacote de remédios em um acordo em controle de
concentração. A despeito dessa hipótese de imposição, em que os acordos de no
poach serão considerados legítimos no contexto do controle de
concentrações, nos EUA esse tipo de acordo vem sendo reconhecido como
ilícito per se, assim como os wage-fixing cartels.
Pela
ótica dos empregadores, o propósito desse tipo de acordo seria proteger os
investimentos feitos pelas empresas para a capacitação dos seus funcionários.
Além disso, a prática visaria evitar que funcionários revelassem segredos
comerciais da antiga empresa ao migrarem para uma nova [10].
Ocorre
que, sob a perspectiva concorrencial, tais acordos podem, do lado dos
empregadores concorrentes, ocasionar a elevação de barreiras à entrada e dos
custos de rivais, enquanto que do lado dos consumidores pode haver redução do
bem-estar através da diminuição da mobilidade dos empregados e da diminuição
dos seus salário e benefícios [11].
Com
base nessa possibilidade de efeitos deletérios à concorrência causados por
ações desta natureza é que o Cade instaurou, em março deste ano, sua primeira
investigação sobre condutas anticompetitivas no mercado de trabalho, entre
departamentos de recursos humanos [12].
O
caso envolve grandes empresas da indústria farmacêutica e fornecedores de
serviços e equipamentos médico-hospitalares, bem como seus respectivos
funcionários, que supostamente teriam trocado informações sensíveis ao mercado
de trabalho, relativas aos reajustes salariais, benefícios oferecidos aos
funcionários e condições de contratação. De acordo com o Cade, também há
indícios de celebração de acordos de fixação de salários e outras variáveis da
remuneração de profissionais e acordos de não concorrência.
As
condutas foram enquadradas nos artigo 36, incisos I a IV, c/c seu §3º, inciso
I, alíneas "a", "b" e "c", e incisos II e VIII da
Lei nº 12.529/2011. Caso venham a ser condenadas, as empresas investigadas
poderão sofrer multas severas, que variam de 0,1% a 20% do seu faturamento
bruto. Os executivos poderão ter que pagar multas que podem variar de R$ 50 mil
a R$ 2 bilhões e os administradores poderão ser punidos com valores
correspondentes a 1% a 20% da multa aplicada às empresas.
Esta
investigação do Cade pode ser compreendida como um sinal de aderência à
tendência internacional de se levar em conta a relação interdisciplinar entre o
Direito da Concorrência e o Direito Trabalhista nas análises concorrenciais.
Até então, o Cade só havia tratado o tema de forma secundária e episódica [13].
Tendo
em vista a importância do trabalho como insumo fundamental para diversos mercados — como
nos casos dos mercados de tecnologia, que demandam intensa e contínua
capacitação dos profissionais para o desempenho das atividades das
empresas —, espera-se que essa primeira ação do Cade de expresso
reconhecimento da inter-relação entre as áreas concorrencial e trabalhista seja
apenas o início do enfrentamento de condutas anticompetitivas relacionadas ao
Direito do Trabalho. Igualmente, imagina-se que, assim como no caso dos EUA, o
tema possa ser desenvolvido e ganhe cada vez mais importância na agenda da
autoridade brasileira, especialmente a ponto de termos em um futuro não tão
distante a edição de um guia capaz de trazer delineamentos mínimos sobre essa
matéria, de modo a fornecer previsibilidade e segurança jurídica aos agentes
econômicos.
[1] ATHAYDE, Amanda;
DOMINGUES, Juliana Oliveira e SILVA E SOUZA, Nayara Mendonça. O improvável
encontro do direito trabalhista com o direito antitruste. Revista do IBRAC,
Volume 24 - Número 2 – 2018, p. 66. Disponível em:< https://core.ac.uk/download/322682014.pdf >.
[2] Podemos citar
como exemplos o caso United States v. Lucasfilm Ltd., em 2010 e U.S.
v. eBay, Inc., em 2012. Mais recentemente, em 2020, o DOJ instaurou sua
primeira acusação criminal envolvendo acordo de fixação de salários (Case
4:20-cr-00358-ALM-KPJ – USA v. Neeraj Jindal).
[3] U.S. DOJ; FTC.
Antitrust Guidance for HR Professionals. Site do U.S Department of Justice,
Washington, D.C., 2016. Disponivel em: < https://www.ftc.gov/public-statements/2016/10/antitrust-guidance-human-resource-professionals-department-justice >.
Acesso em 20 outubro 2021.
[4] <https://one.oecd.org/document/DAF/COMP/WD(2019)51/en/pdf>.
[5] NAIDU, S.;
POSNER, E. A.; WEYL, E. G. Antitrust Remedies for Labor Market Power. Harvard
Law Review, Cambridge, MA, 23 fevereiro 2018. Disponivel em: < https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3129221 >. Acesso
em: 20 outubro 2021.
[6] OECD, 2019
"Competition Concerns in Labour Markets – Background Note",
DAF/COMP(2019).
[7] ATHAYDE, Amanda;
DOMINGUES, Juliana Oliveira e SILVA E SOUZA, Nayara Mendonça. O improvável
encontro do direito trabalhista com o direito antitruste. Revista do IBRAC,
Volume 24 - Número 2 – 2018, p. 88.
[8] U.S. DOJ; FTC,
2016, p. 3.
[9] Processo
Administrativo nº 08700.004404/2016-62.
[10] LOBO, Catarina,
PICCOLI, Júlia. Acordos de não-aliciamento de trabalhadores e suas implicações
antitruste. Jota. 2021. Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/acordos-de-nao-aliciamento-de-trabalhadores-e-suas-implicacoes-antitruste-22032021 >.
Acesso em 19 outubro 2021.
[11] LOBO, Catarina,
PICCOLI, Júlia, 2021.
[12] Processo
Administrativo nº 08700.004548/2019-61.
[13] Não exaustivamente, citamos: Processo Administrativo nº 08012.003021/2005-72, no qual o Cade analisou uma conduta similar à prática de "No Poach Agreements" e Processo Administrativo nº 08012.002812/2010-42, em que houve alegação de existência de acordo de não contratação empregados de empresas concorrentes.
(**) advogada no escritório Vilanova Advocacia e ex-assessora no tribunal do Cade
Para ler mais acesse, www: professortacianomedrado.co
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