Professora, doutora em
Direito pela PUC/RS e mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade de
Lisboa-Portugal.
Era
o ano de 1939, época em que o racismo e o machismo imperavam no mundo que
mergulhava na 2ª Guerra Mundial. No Brasil, o Estado Novo de Vargas é conivente
com o fascismo e o nazismo. Nesse mesmo ano, Raquel de Queiroz publica o
romance "As três Marias" [1]:
"Mamãe
estava na rede, comigo no colo, me dando o peito. Ele veio com a carta na mão,
esfregou-lhe o papel na cara, perguntando se ela não conhecia aquela letra. A
pobrezinha não disse nada, agarrou-se comigo, sem coragem de olhar para
ele. E o desgraçado enterrou-lhe o punhal nas costas, ela deu um gemido rouco,
foi me soltando dos braços, eu rolei no chão, e me lavei toda no sangue que ia
empoçando no tijolo. Foram três punhaladas. Morreu sozinha, sem ninguém
ajudando, sem nem ao menos uma vela na mão...".
Essa
é a curta história de uma companheira das três Marias no colégio interno, cujo
pai matara a mãe "num furor de ciúme" [2].
A
cena escancara a persistente realidade do patriarcado no Brasil e a violência
injustificada e impune, não fosse o fato de que o pai assassino do romance
cumprira a pena pelo crime cometido.
O
Brasil de hoje insiste em não ser muito diferente daquele de ontem. Se o
Supremo Tribunal Federal não reformulasse seu entendimento, ou por meio da ADPF
779/DF e/ou da repercussão geral no agravo do recurso extraordinário
1.225.185/MG, tema 1.087, ainda em julgamento, o furor de ciúme continuaria a
ser utilizado como desculpa para matar.
Explica-se:
em decisão no Habeas Corpus 178.777/MG, de crime tentado de feminicídio, em que
o acusado confessou que apunhalara com uma faca, várias vezes, sua companheira,
pois acreditava ter sido por ela traído, o Supremo Tribunal Federal acatou o
argumento da soberania do tribunal do júri. Nesse caso, houve a absolvição do
acusado pelos jurados; proposto recurso no Tribunal de Justiça local,
determinou-se novo julgamento, por violação da prova dos autos; por fim,
impetrou-se o HC no Supremo Tribunal Federal, que confirmou o veredito dos
jurados.
O
Supremo Tribunal Federal, na decisão do HC 178.777/MG, ao afirmar a tese da
soberania do tribunal do júri, como que reabilitou a "legítima defesa
da honra", que é a versão jurídica do "furor de ciúme". O
alerta dos efeitos retrógrados dessa decisão está no voto do ministro Alexandre
de Moraes, explicitando que a alegação da "legítima defesa da
honra" sempre foi utilizada como meio de absolvição de "homens
violentos que matavam suas esposas, namoradas, mulheres",
tornando-nos, "lamentavelmente, em campeão de feminicídio".
O
aumento de feminicídios no país foi constatado pela Comissão Interamericana de
Direitos Humanos que, em 2019, demonstrou ser 40% dos assassinatos de mulheres
registrados no Caribe e na América Latina originários do Brasil. Em 2020,
segundo dados consolidados nas Secretarias de Segurança Pública dos Estados,
houve 1.338 feminicídios no Brasil, uma alta de 2% em relação ao ano de
2019 [3]. Esses dados
de violência contra a mulher demonstram que ainda hoje no Brasil o patriarcado,
que consiste na dominação dos homens (grupo social considerado superior) sobre
as mulheres (grupo social considerado inferior) [4], garante
à sociedade enxergar a violência aceitável como meio de controle social [5].
Ficção
e realidade se entrecruzam, passado teima em se fazer presente, e as mulheres
continuam sendo condenadas à desonra e à morte. Isso porque a decisão do
Supremo Tribunal Federal no HC 178.777/MG não foi a única: desde 1991, o
argumento retrógrado e patriarcal da "legítima defesa da honra" ou
de matar alguém por "furor de ciúme" ainda absolve homens
violentos que se julgam proprietários de mulheres, "imputando às
próprias vítimas a causa de suas mortes" [6].
No
entanto, espera-se que os julgamentos de feminicídios, a partir da medida
cautelar concedida pelo ministro Dias Toffoli, em 26 de fevereiro de 2021, na
ADPF 779-DF ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), com o objetivo
de afastar a tese jurídica da "legítima defesa da honra", possam
enfrentar a realidade da violência contra a mulher e não mais transformar a
vítima em culpada.
Os
argumentos do ministro Dias Toffoli, na medida cautelar da ADPF 779/DF,
demonstram a inconstitucionalidade da "legítima defesa da honra" por
contrariar os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da
igualdade de gênero, rompendo com "a cultura da violência contra as
mulheres no Brasil".
A "legítima
defesa da honra", segundo a cautelar, "tem raízes arcaicas no
direito brasileiro, constituindo um ranço, na retórica de alguns operadores do
direito, de institucionalização da desigualdade entre homens e mulheres e de
tolerância e naturalização da violência doméstica" — e, por mais
absurdo que possa parecer, foi aplicada até há pouco, contrariando a
Constituição de 1988, pelo simples fato de que "o ser humano é um fim
em si mesmo, não podendo jamais ter seu valor individual restringido por outro
ser humano ou atrelado a uma coisa" [7].
O
referendo na medida cautelar na ADPF 779/DF, em 15 de março de 2021, pela
unanimidade dos ministros do Supremo Tribunal Federal, excluiu "a
legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa".
"Legítima
defesa da honra" não é, tecnicamente, legítima defesa. A traição se encontra
inserida no contexto das relações amorosas. Seu desvalor reside no âmbito ético
e moral, não havendo direito subjetivo de contra ela agir com violência. Quem
pratica feminicídio ou usa de violência com a justificativa de reprimir um
adultério não está a se defender, mas a atacar uma mulher de forma
desproporcional, covarde e criminosa. O adultério não configura uma agressão
injusta apta a excluir a antijuridicidade de um fato típico, pelo que qualquer
ato violento perpetrado nesse contexto deve estar sujeito à repressão do
direito penal [8].
Muito
embora, nos votos dos ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luís Roberto
Barroso e Luiz Fux, no referendo da medida cautelar na ADPF 779/DF, houve a
concessão da medida em maior extensão do que fora concedida pelo ministro Dias
Toffoli, somente foi acatada a ressalva — pelo relator — da
extensão do voto do ministro Gilmar Mendes, como demonstra a análise dos votos
a seguir:
O
voto do ministro Gilmar Mendes tornou evidente a necessidade de estender os
efeitos da medida cautelar da ADPF 779/DF a todos os atores envolvidos no
processo, além da defesa: acusação, autoridade policial e juiz. Isso porque
nenhuma das partes no processo de feminicídio pode alegar a "legítima
defesa da honra nos assassinatos de mulheres, cis ou transgênero". É
importante frisar que em uma interpretação sistêmica das decisões do Supremo
Tribunal Federal o termo "mulheres" inclui todas as mulheres
(cisgênero ou transgênero): não importa se a mulher vítima de morte é pessoa
que se identifica completamente com o seu gênero de nascimento ou é pessoa que
não se identifica com o gênero de nascimento. O que importa é que todos os
corpos de mulheres devem ser respeitados. Por isso, há
"[...]
a proibição de discriminação das pessoas em razão do sexo, seja no plano da
dicotomia homem/mulher (gênero), seja no plano da orientação sexual de cada
qual deles. Essa proibição do preconceito tem como capítulo o
constitucionalismo fraternal e a homenagem ao pluralismo como valor
sócio-político-cultural. Além da liberdade para dispor da própria sexualidade,
inserida na categoria dos direitos fundamentais do indivíduo, expressão que é da
autonomia de vontade. O reconhecimento do direito à preferência sexual advém da
direta emanação do princípio da 'dignidade da pessoa humana': direito à
auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca
da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação
do direito à liberdade sexual" [9].
O
voto do ministro Edson Fachin ressalta que os tribunais do júri devem assegurar
a participação da sociedade na administração da justiça, mas não mais podem ser
coniventes com o arbítrio e a discriminação. Por isso,"[...] é parte da
missão constitucional deste tribunal honrar a luta pela afirmação histórica dos
direitos das minorias, não se podendo permitir que, a pretexto de interpretar o
direito democrático da cláusula do júri, sejam revigoradas manifestações
discriminatórias. [...] Ainda que fundada em eventual clemência, a decisão do
júri não pode implicar a concessão de perdão a crimes que nem mesmo o Congresso
Nacional teria competência para perdoar. Mesmo porque o homicídio qualificado,
nos termos do artigo 1º, I, da Lei n° 8.072/90, — cometido
contra mulher por razões da condição do sexo feminino — é considerado
crime hediondo".
Os
argumentos jurídicos nos votos dos ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux
corroboram o voto do ministro Edson Fachin no sentido de se "evitar
mesmo que sub-repticiamente ser levado em consideração pelos jurados uma
absolvição por clemência genérica. Para remediar casos como esse — afirma
o ministro Barroso — é importante o Tribunal local deixar claro o
cabimento do recurso de apelação previsto no artigo 593, §3°, do CPP".
Denota-se que o objetivo desses votos é a exclusão:
"[...]
no artigo 483, III e §2º, do Código de Processo Penal, da interpretação de que
o quesito genérico autoriza a absolvição pela tese de legítima defesa da honra,
de modo que o acórdão do Tribunal de Justiça que a anula seja considerado compatível
com a garantia da soberania dos vereditos do Tribunal do Júri".
Já
o voto da ministra Carmem Lúcia apresentou um estudo histórico-jurídico da
situação da mulher, como propriedade sexual do homem, citando as ordenações
Filipinas de 1605, em que "o poder do homem sobre o corpo e a vida da
mulher" eram integrais: o homem casado poderia matar "licitamente" a
mulher e o homem adúltero, e, comprovado o adultério, seria "livre
sem pena alguma", "salvo se o marido for peão, e o adúltero
fidalgo ou nosso desembargador, ou pessoa de maior qualidade. Porém, quando
matasse alguma das sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adultério,
não morrerá por isso, mas será degredado para a África com pregão na audiência,
pelo tempo que aos julgadores bem parecer, segundo a pessoa que matar, não
passando de três anos"(Livro V, Título XXXVIII).
Continua
o voto da ministra Carmen Lúcia, orientando que a cobrança cultural, social e
política sobre a conduta da mulher aparece explicitamente na legislação penal
até o início da vigência da Lei 11.106/2005, que revoga vários dispositivos do
Código Penal e dele retira expressões como "mulher honesta" e "mulher
virgem" para configuração de delitos "contra os
costumes". Assevera ainda que, apesar da evolução legal (Lei 11.340/2006
"Lei Maria da Penha") e constitucional (artigo 5º, inc. I e artigo
226, §8º, da CF/88):
"[...]
o Estado e a sociedade continuam aceitando a violência de gênero contra a
mulher. Uma das demonstrações desta triste constatação é a admissão da tese
defensiva da 'legítima defesa da honra', em situações nas quais o 'brio' e
o 'orgulho ferido' do homem justificariam, culturalmente, a prática do
feminicídio e a absolvição do autor do assassinato".
Inobstante
os avanços alcançados em relação à igualdade dos direitos, têm-se que levar em
conta que ainda há inúmeros obstáculos a serem enfrentados, e um deles com
certeza é a questão da violência contra a mulher. Neste contexto, não se deve
perder de vista o ensinamento de Sueli Carneiro de que: "a
prevalência da concepção de que certos humanos são mais ou menos humanos do que
outros nos leva à naturalização da desigualdade de direitos". Por isso,
como adverte o voto do ministro Alexandre de Moraes, a violência contra a
mulher só há de acabar quando as instituições em conjunto com a sociedade não
mais tolerarem "não somente o discurso discriminatório, mas a
impunidade daqueles envolvidos em crimes tão selvagens, cruéis e
desumanos" [10].
[1] QUEIROZ, Raquel
de. As três Marias. Rio de Janeiro: José Olympio, 28ª edição, 2018, p. 37.
[2] PELICIOLI, Angela
Cristina. "Legítima Defesa da Honra?" Disponível: https://ndmais.com.br/opiniao/artigo/legitima-defesa-da-honra/.
Acesso em: 05/02/2021.
[3] BRAGON, Ranier.
Brasil registra 1.338 feminicídios, na pandemia com forte alta no Norte e no
Centro-oeste. Folhajus. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/06/brasil-registra-1338-feminicidios-na-pandemia-com-forte-alta-no-norte-e-no-centro-oeste.shtml.
Acesso em: 06/06/2021.
[4] LERNER, Gerda. A
criação do patriarcado. História da opressão das mulheres pelos homens.
Tradução Luiza Sellera. 1ª. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2019, p. 290.
[5] "O
pensamento sexista continua a apoiar a dominação masculina e a consequente
violência. [...] Com mais homens entrando para o grupo de desempregados ou
recebendo baixos salários, e mais mulheres entrando para o mercado de trabalho,
alguns homens sentem que o uso da violência é a única maneira de estabelecer e
manter o poder e a dominação dentro da hierarquia sexista do papel dos sexos.
Até que desaprendam o pensamento sexista que diz que eles têm direito de
comandar as mulheres de qualquer forma, a violência de homens contra mulheres
continuará sendo norma". HOOKS, Bell. O feminismo é para todo o mundo.
Políticas arrebatadoras. Tradução: Bhuvi Libanio. 13 ª edição. Rio de Janeiro:
Ed. Rosa dos Tempos, 2020, p. 99-100.
[6] Medida cautelar
na ADPF n° 779-DF, rel. Min. Dias Toffoli, decisão de 26 de fevereiro de 2021.
[7] Medida cautelar
na ADPF n° 779-DF, rel. Min. Dias Toffoli, decisão de 26 de fevereiro de 2021.
[8] Referendo na
medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n°
779-DF, Voto do ministro Dias Toffoli, julgamento em 15/03/2021.
[9] Ação Direta de
Inconstitucionalidade n° 4.277-DF, relator ministro Ayres Brito, decisão de
05/05/2011.
[10] Voto do ministro
Alexandre de Moraes, no referendo da medida cautelar na ADPF n° 779-DF, decisão
de 15 de março de 2021.
Para
ler mais acesse, www: professortacianomedrado.com
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