Doutor e mestre em Direito, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e do Centro Universitário Christus (Unichristus). Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA). Visiting scholar da Wirtschaftsuniversität (Viena, Áustria).
Não é raro ouvirmos, ou lermos, em discussões em torno das medidas tomadas pelo poder público para conter o avanço da pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-119) que a restrição ao exercício de atividades econômicas é fruto da perversidade de governantes. Insensibilidade para com as dificuldades enfrentadas pelos que exercem atividades econômicas.
O objetivo deste artigo não é
propriamente o de defender, ou atacar, restrições como o lockdown, que
muitos governadores de estado vêm implementando. Epidemiologistas,
especialistas em saúde pública, e infectologistas talvez sejam mais
habilitados para esse debate. À população que não detém os conhecimentos
especializados inerentes a tais áreas caberia, portanto, alguma humildade para
ouvir quem estudou um pouco mais a respeito do assunto. E para observar o que,
em muitos outros países no mundo, foi ou está ainda sendo feito nesse sentido.
Em verdade, o que se pretende aqui é
tão somente examinar o argumento segundo o qual os Estados implantariam medidas
como o lockdown, toques de recolher e restrição nos horários
de funcionamento de estabelecimentos comerciais, por insensibilidade, ou mera
perseguição mesmo, relativamente àqueles que exercem atividades econômicas. A
análise, portanto, dar-se-á exclusivamente sob o prisma tributário.
No mundo contemporâneo, não se tem
mais o chamado "Estado patrimonial", assim entendido aquele que era
proprietário de terras, portos, minas, rios, e nessa condição os explorava
para, daí, extrair os recursos necessários ao seu financiamento. Também não
mais subsiste o chamado "Estado empresário", detentor dos meios de
produção e, assim, responsável pela geração das riquezas necessárias ao seu próprio
sustento. Quanto a este último, o fracasso das economias em que a propriedade
dos meios de produção era subtraída dos particulares fala por si. Contra fatos
não há argumentos.
Vive-se hoje, portanto, a primazia do
"Estado fiscal", assim entendido aquele que faculta aos particulares
o livre exercício da atividade econômica, dela participando apenas
excepcionalmente, mas que se apropria de fração do resultado nela obtido, para
financiar suas atividades. Trata-se da maneira de implementar a máxima liberal
de permitir aos particulares o amplo exercício de uma extensa gama de
liberdades, inclusive econômicas, mas fazê-lo de modo a garantir aos que se
encontram em posições menos favorecidas meios, ou oportunidades, para ascender
ou mudar de posição social.
Em suma, o Estado, em regra, não
produz. Mas depende de quem produz. Não exerce atividades empresariais, mas
tributa quem o faz. Sua principal fonte de custeio é a receita tributária, dita
derivada, a saber, fruto da riqueza gerada por terceiros, que são compelidos
pelo Estado a entregar-lhe fração dela.
Tais noções, de resto óbvias e
elementares no âmbito do Direito Tributário, e das finanças públicas, são aqui
lembradas para afastar a ideia de que medidas restritivas do exercício de
atividades econômicas, como o lockdown, tomadas como forma de
conter o avanço do vírus, são decorrentes da maldade, do egoísmo ou da
insensibilidade de governantes. As medidas até podem ser passíveis de críticas,
correções ou aperfeiçoamentos, mas não se pode dizer que sejam fruto do egoísmo
ou da indiferença dos governantes.
A razão é simples. Se o poder público
não produz riqueza; se, em regra, não gera os recursos de que necessita para
atender os seus fins, dependendo para tanto da riqueza gerada pelos
particulares, que lhe é transferida por intermédio dos tributos, então medidas
que restringem o exercício de atividades econômicas obviamente prejudicam
também o poder público.
Se o Estado, em regra, não produz,
não vende, não é proprietário, mas tributa aqueles que produzem e vendem,
medidas que restringem o exercício de atividades econômicas e diminuem a
produção e a comercialização de bens e serviços têm impacto direto, por igual,
na arrecadação de tributos, vale dizer, na receita pública.
Nessa ordem de ideias, o lockdown, além
de não ter fundamento ideológico, até por estar sendo decretado em todo o
mundo, conforme o grau de necessidade, por governos de direita ou de esquerda,
não é medida que prejudique apenas o setor privado. Afeta, também, o setor
público, que depende da economia e por ela é sustentado.
Aliás, em todo o mundo, a Covid-19
impõe ao poder público não apenas uma diminuição das receitas, mas um aumento
de despesas, com o crescente gasto com internações, com a prestação dos
serviços de saúde e a necessidade de ampliação dos leitos de UTI, e por igual
com o pagamento de auxílios àqueles que se veem privados ou limitados em sua
liberdade econômica. Um maior auxílio aos que se veem privados de sua liberdade
econômica, isso, sim, pode ser validamente debatido, em vez de se cogitar da
pressionar contribuintes, inclusive criminalmente, por uma maior arrecadação,
como já foi examinado aqui nesta coluna. Daí por que o impacto nas contas
públicas é duplo, pois se reduzem receitas e se aumentam despesas, com reflexos
evidentes no aumento do déficit.
Tampouco se devem interpretar as
medidas restritivas como punições, algo comum quando se diz que o empresário do
varejo deste ou daquele setor não é o "culpado" pela
proliferação do vírus, não podendo por isso sofrer os efeitos das medidas
adotadas para conter sua propagação. Não se trata de castigo, a ser
perfeitamente individualizado conforme o grau de imputabilidade ou de culpa,
mas de medida necessária a diminuir o número de infectados e evitar o colapso
do sistema de saúde, levando pessoas à morte simplesmente por não haver
condições para que sejam atendidas, por falta de vagas nos hospitais. O setor a
ser objeto de restrição deve ser aquele considerado menos essencial, e mais
propício à propagação do vírus, e não aquele menos culpado por se ter chegado
na situação atual.
Não se deve, por outro lado,
argumentar que, em vez de lockdown, seria melhor aumentar, ainda
mais, os leitos de UTI. Para além da questão de que se deve evitar que o país
funcione como um "celeiro de variantes", o aumento no número de
doentes, exponencial, pode fazer com que seja simplesmente inócuo multiplicar
leitos de hospitais, por mais que se tente. Aliás, não apenas o leito em si,
mas os medicamentos necessários, e o oxigênio, entre outros insumos e suprimentos,
para não referir os profissionais de saúde. Tais recursos são limitados, e cedo
ou tarde serão insuficientes, por mais que se invista neles, sendo certo que há
pessoas que mesmo internadas e submetidas ao melhor tratamento disponível,
ainda assim vêm a óbito, o que poderia ser evitado, pelo menos até que uma
parcela maior da população esteja vacinada. Nesse contexto, argumentar que em
vez de adotar medidas restritivas o Estado deveria aumentar os leitos de UTI
soa como defender a liberdade de dirigir alcoolizado e sem cinto de segurança,
entendendo-se que caberia ao Estado remediar possíveis danos daí decorrentes
com a construção de mais e mais hospitais especializados em traumatologia. As
pessoas reclamam de um Estado excessivamente intervencionista, mas comportam-se
de forma contraditória com essa reclamação, como se precisassem mesmo de um, na
medida em que não reconhecem suas próprias responsabilidades diante do
problema. Há certas coisas que não precisariam ser impostas pelos governantes
para serem vistas como necessárias pela sociedade, se esta se deseja emancipar.
Pessoas que nunca se preocuparam com
a fome no mundo, ou com o desemprego, rapidamente adotam essas bandeiras,
quando em verdade estão preocupadas apenas com a redução, no curto prazo, de
suas receitas. Em relação a elas, é preciso lembrar, porém, que, se vierem a
óbito, essas receitas de nada lhes servirão. Mortos seus clientes,
fornecedores, e colaboradores, tampouco sua atividade fará qualquer sentido. A
economia é o conjunto de atividades realizadas por seres humanos com o objetivo
de produzir, distribuir e consumir bens e serviços necessários ao bem viver,
não chegando sequer a fazer sentido se não existirem seres humanos com saúde
para realizar tais atividades.
Conclui-se, daí, que, se governadores
de partidos das mais variadas ideologias têm decretado medidas destinadas a
restringir o exercício de atividades econômicas, isso se deve ao fato de que
tais medidas são realmente necessárias, ou pelo menos são vistas como tal pelos
governantes e pelos especialistas que os assessoram. Não se trata de pura
insensibilidade, até porque todos perdem com elas. A questão reside em aferir
quais perdas são maiores: as decorrentes de sua decretação, ou de sua não
decretação. Nesse contexto, a comparação com o que se fez e o que ocorreu em
outros países talvez dê algum amparo empírico à discussão.
Para ler mais acesse, www: professortacianomedrado.com
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