ARTIGO: Retorno às aulas nas universidades: está faltando algo.

 



Por: Fabricio Motta
Conselheiro do TCM-GO e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Reza uma de nossas mais interessantes lendas futebolísticas que, durante a Copa de 1958, na preleção antes do jogo contra a União Soviética, o técnico Vicente Feola explicou aos nossos jogadores uma detalhada estratégia para a vitória brasileira. A elaborada ideia envolvia troca de passes, lançamentos, movimentações e dribles nos adversários  um plano detalhado à altura do talento dos nossos geniais jogadores  e deveria culminar com um gol brasileiro. Conta-se que Garrincha, com sua simplicidade desconcertante, teria perguntado ao técnico: "Tudo bem, mas o senhor já combinou isso com os russos?". A lenda  ou história  é repetidamente lembrada quando nos apresentam ideias e soluções supostamente simples e/ou aparentemente geniais para situações complexas, algumas inclusive envolvendo interpretação e aplicação do ordenamento jurídico.

No dia 2 de dezembro último foi publicada no Diário Oficial da União a Portaria nº 1.030/2020, por meio da qual o Ministério da Educação dispôs "sobre o retorno às aulas presenciais e sobre caráter excepcional de utilização de recursos educacionais digitais para integralização da carga horária das atividades pedagógicas enquanto durar a situação de pandemia do novo coronavírus — Covid-19".

De acordo com o artigo 1º, as atividades letivas realizadas por instituição de educação superior integrante do sistema federal de ensino deveriam ocorrer de forma presencial, observado o Protocolo de Biossegurança do MEC [1] a partir de 4 de janeiro de 2021, data de entrada em vigor da Portaria.

Após grande reação das universidades e dos órgãos de imprensa, foi noticiado [2] que a portaria seria revogada. Notícia publicada no sítio oficial do MEC no dia 4 de dezembro, por outro lado, informava — sem fazer referência à revogação — que "a reunião para tratar da Portaria MEC 1030, de 01 de dezembro de 2020, transcorreu de forma positiva, construtiva e cordial" [3]. Tudo indica que, pelo menos até a data em que este texto foi escrito (6/12/20), não houve revogação da Portaria nº 1.030/20 [4].

Pretendo me abster de qualquer comentário que envolva conhecimentos sanitários e epidemiológicos, limitando-me a relembrar que a competência constitucional comum dos entes da federação para cuidar da saúde pública — e a consequente competência de Estados e municípios para adoção de medidas restritivas — tem sido objeto de sucessiva atenção por parte do Supremo Tribunal Federal [5]. Centrarei o foco na análise do artigo 207 da Constituição e dos contornos da autonomia universitária para, finalmente, concluir a respeito da juridicidade da Portaria do MEC. Retomo, nesta oportunidade, considerações já escritas em obra coletiva sobre o tema [6].

De acordo com o artigo 207 da Constituição, as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Os órgãos ou entidades dotados de autonomia pela Constituição são aqueles que necessitam, para o exercício adequado de suas funções, de normas específicas tocantes à sua organização e ao seu funcionamento. Tais normas estruturarão a garantia dos direitos de seus titulares ou membros, disciplinarão a formação e eficácia jurídica da sua vontade e também sua organização voltada à eficiência no exercício das atribuições respectivas. Assim ocorre com os poderes, com o Ministério Público e com as Defensorias Públicas, por exemplo — a Constituição reconhece aos órgãos autônomos esse espaço normativo, de forma explícita ou implícita, envolvendo a previsão da elaboração de normas próprias.

No que se refere às universidades, a autonomia lhes é imanente — tratam-se de instituições que se fundam na livre circulação de pensamentos e na transmissão de conhecimentos, sendo a autonomia essencial para a evolução das ciências e de seus métodos investigativos.

A autonomia é eminentemente instrumental: as instituições que a possuem detém relevantes atribuições cujo desempenho depende justamente do correto manejo do espaço normativo, sem interferências que não encontrem fundamento direto na Constituição. A instrumentalidade da autonomia permite reconhecer às entidades e órgãos autônomos importante atributo: a competência para criar normas próprias, nos termos e limites da norma superior concessiva e de forma integrada ao ordenamento jurídico como um todo. A autonomia, sob o prisma normativo, é uma limitação que a Constituição impõe a si mesma: significa regular com normas próprias situações propositalmente não alcançadas pela lei, com a finalidade de garantir e proteger certos interesses [7].

Os atos editados com fundamento na autonomia universitária, no estrito limite de suas atribuições, serão considerados primários, ligados por grau de dependência somente à mesma Constituição, possuindo a natureza de lei em sentido material e, consequentemente, o mesmo grau hierárquico conferido à lei formal. A ingerência do Executivo ou do legislativo no campo específico destinado à normatização pelas entidades ou órgãos autônomos consistirá, por isso, violação à ordem constitucional.

Voltando à portaria: o retorno às aulas presenciais envolve, em especial, duas das dimensões da autonomia constantes do artigo 207 da Constituição: didático-científica e administrativa. No que se refere à primeira dimensão, pode-se afirmar, em simples palavras, que é em razão da autonomia didático-científica que todas as demais existem. Nas atividades de ensino, pesquisa e extensão, consiste na liberdade de ensinar, como ensinar, quando ensinar e o que ensinar: cabe à universidade plena liberdade para definir qual conhecimento é relevante, como, quando e por quais meios deve ser transmitido [8]. A autonomia administrativa, por sua vez, envolve a capacidade própria de organização de estruturas, métodos e procedimentos para o desempenho das respectivas atividades.

Esclarecida sucintamente a compreensão constitucional da autonomia universitária, vejamos se a mesma Constituição atribui ao Ministério da Educação alguma competência apta a interferir na referida autonomia.

O artigo 87, parágrafo único, incisos I e II, reconhece aos ministros de Estado competência para "exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência e referendar os atos e decretos assinados pelo Presidente da República" (inciso I) e "expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos" (inciso II). Não há dúvidas de que essas relevantes atribuições devem ser exercidas nos termos das leis, que devem ter seu fundamento na mesma Constituição, obviamente. Nesse cenário, possuem especial relevância o Dec-Lei nº 200/67 (que disciplina o instituto da supervisão ministerial como meio de controle exercido pelo Executivo com relação às entidades da administração indireta, como as universidades federais) e a Lei nº 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que nos dispositivos invocados na motivação da Portaria do MEC — artigo9º, incisos II e VII — estabelecem a competência da União para organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais do sistema federal de ensino e baixar normas gerais sobre cursos de graduação e pós-graduação).

Como se percebe, os dispositivos constitucionais invocados na portaria não consagram competências que poderiam contribuir para conformar, no plano constitucional, a autonomia universitária.

No plano infraconstitucional, como reconhece Alexandre Santos de Aragão, "a competência da União para editar normas gerais em educação reforça a efetividade da autonomia universitária das seguintes maneiras: a) as normas gerais pressupõem o não esgotamento da matéria, devendo deixar amplo espaço para normatizações posteriores; b) dessa forma, preservam o espaço normativo das próprias universidades no que diz respeito às normas específicas necessárias ao desempenho autônomo das suas atividades; c) as normas gerais devem regulamentar a autonomia universitária constitucional visando protegê-la; e d) como às normas gerais cabe estabelecer apenas os princípios da matéria, entre os quais deve, por imposição constitucional, necessariamente constar o princípio da autonomia universitária, infere-se que as exceções a esse princípio, que forem legítimas em virtude da ponderação com outras normas constitucionais, só poderão ser veiculadas na própria legislação nacional" [9].

O Ministério da Educação não possui, dessa forma, competência para disciplinar por meio de ato normativo assunto contido nos limites da autonomia universitária: faltou combinar com a Constituição, eu diria, inspirado no saudoso Mané Garrincha [10].

Referências :

1] Instituído por intermédio da Portaria MEC nº 572, de 1º de julho de 2020.

[2]  matérias: https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/ensinos

[3] https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/nota-de-esclarecimento-2.

[4] No mesmo sentido, na data em que escrevia este artigo não consegui localizar, no Diário Oficial da União, a suposta portaria de revogação.

[5] São particularmente importantes as decisões adotadas na ADI 6341/DF, ADI 6343/DF e ADPF 672/DF.

[6] MOTTA, Fabrício. Dimensões da autonomia universitária na Constituição da República. In: CABRAL, Edson César dos Santos, QUEIROZ, João Eduardo Lopes (Org.). Autonomia universitária: 30 anos no Estado de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 2020, p.117-136.

[7] Nesse sentido: RANIERI, Nina. Autonomia universitária: as universidades públicas e a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Editora da USP, 1994.

[8] Certamente é necessária atenção às demais normas constitucionais para a correta compreensão do grau de autonomia. No que diz respeito ao ensino, por exemplo, a universidade está institucionalmente vocacionada à a prestá-lo visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (artigo205). Dentre os valores que devem guiar o ensino público universitário, destacamos a igualdade de condições para o acesso e permanência, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino e a gestão democrática do ensino público, na forma da lei, dentre outros (artigo206).

[9] ARAGÃO, Alexandre Santos de. A autonomia universitária e suas dimensões no direito brasileiro. In: CABRAL, Edson César dos Santos, QUEIROZ, João Eduardo Lopes (Org.). Autonomia universitária: 30 anos no Estado de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 2020, p.117-136.

[10] Relembro, além da questão relativa à autonomia universitária, a importância de atentar também para o regime de competências constitucionais no zelo com a saúde pública: "O Poder Executivo federal exerce o papel de ente central no planejamento e coordenação das ações governamentais em prol da saúde pública, mas nem por isso pode afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotem medidas sanitárias previstas na Lei 13.979/2020 no âmbito de seus respectivos territórios, como a imposição de distanciamento ou isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, sem prejuízo do exame da validade formal e material de cada ato normativo específico estadual, distrital ou municipal editado nesse contexto pela autoridade jurisdicional competente" (ADPF 672 MC-Ref/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DOU de 12/11/20).

 

Fonte; Artigo extraído da Revista Consultor Jurídico do dia  10 de dezembro de 2020.

 

 

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