(*) Jones Figueirêdo Alves
1. Não
julguem o devedor como um ser que subverte a ordem jurídica, pecador pela
contumácia, moroso por vontade própria, um grave risco para a sociedade
credora. Antes, ele poderá ser um vulnerável, na desolação das regras hígidas
de mercado, um perdedor nato pela inclemência da mora ou de juros exorbitantes.
De regra, quando somente inadimplente de obrigações alimentares, é chamado ele
a se justificar, inibindo uma prisão civil ou quando sob os regimes especiais
judiciais de recuperação.
O
tema ganha maior relevo e atenção diante de decisões da 8ª Turma Especializada
do TRF-2, que afastaram a incidência da Lei 8.009/1990 por entendê-la sob
revogação tácita pelo atual Código de Processo Civil/2015, não prevendo o
estatuto processual a impenhorabilidade dos bens de família, objeto de matéria
recente da ConJur. (01). Ou seja, tornar-se-ia penhorável o bem de família
legal cogitado na lei específica.
É
incontroverso, todavia, que no amplo espectro do artigo 91 do Código Civil, em
universalidade de direito patrimonial, o bem de família constitui patrimônio
destinado ou afetado, como patrimônio essencial familiar sob as suas duas
espécies (cf. artigos 1.771 a 1.722, do Código Civil; Lei 8.009/1990). A
primeira, como bem de família voluntário, regulado pelo Código Civil; a segunda
como bem de família legal, instituído pela Lei 8.009/1990 e inspirado em tese
de doutorado do jurista Álvaro Vilaça Azevedo.
Diz-nos
Silvio Neves Baptista, com precisão de sua cátedra:
“O
bem de família legal é o imóvel que serve de residência a uma pessoa, casal ou
entidade familiar, em virtude do que não pode ser objeto de execução por
qualquer tipo de dívida, civil, fiscal, trabalhista, previdenciária ou de outra
natureza, quer de dívida anterior ou posterior a sua constituição, ressalvadas
apenas as exceções previstas pela própria lei no seu artigo 3º. Tornam-se assim
impenhoráveis o bem residencial e seus acessórios, tão só com a comprovação de
que o titular reside no imóvel próprio”.
Destaca
Marcel Edvar Simões que desse regime jurídico especial de patrimônio, “ressalta
o traço da impenhorabilidade, com uma série de nuances e detalhamento previstos
pela lei ou agasalhados pela jurisprudência – sendo esta uma fonte criadora
inegável na matéria” (02).
De
ver que “mesmo alugado a terceiros, o único imóvel residencial não perde a
característica de bem de família, não podendo ser penhorado” (STJ – 2 Seção,
STJ - EResp. 339.766), unificando-se o entendimento de fazer jus aos benefícios
da Lei 8.009/1990, o devedor que “não residindo no único imóvel que lhe
pertence, utiliza o valor obtido com a locação desse bem como complemento da
renda familiar, considerando que o objetivo da norma é o de garantir a moradia
familiar ou a subsistência da família”.
Pois
bem. Terá, então, sido extinta a segunda espécie do bem de família, malgrado as
duas modalidades servirem à finalidade específica de proteção da família e de
seus membros? Haverá, de fato, um novo horizonte de leitura da lei?
2.
Leituras do STF. Observe-se, de saída, que em decisão monocrática no RE
352.940, sob a relatoria do ministro Carlos Veloso, em 21.04.2005, o eminente
civilista pontuou:
“O
bem de família - a moradia do homem e sua família - justifica a existência de
sua impenhorabilidade: Lei 8.009/90, art. 1º. Essa impenhorabilidade decorre de
constituir a moradia um direito fundamental.
Posto
isso, veja-se a contradição: a Lei 8.245/1991, excepcionando o bem de família
do fiador, sujeitou o seu imóvel residencial, imóvel residencial próprio do
casal, ou da entidade familiar, à penhora. Não há dúvida que ressalva trazida
pela Lei 8.245/1991, - inciso VII do artigo 3º - feriu de morte o princípio
isonômico, tratando desigualmente situações iguais, esquecendo-se do velho
brocardo latino: Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio, ou em vernáculo:
"Onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de
Direito."
Isto
quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado dispositivo -
inciso VII do artigo 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91, não foi recebido pela
EC 26/2000.
Essa
não recepção mais se acentua diante do fato de a EC 26/2000, ter estampado,
expressamente, no artigo 6º da Constituição Federal, o direito à moradia
como direito fundamental de 2ª geração, direito social. Ora, o bem de família -
Lei 8.009/90, artigo 1º - encontra justificativa, foi dito linha atrás, no
constituir o direito à moradia um direito fundamental que deve ser protegido e
por isso mesmo encontra garantia na Constituição.
Em
síntese, o inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/1990, introduzido pela Lei
8.245, de 1991, não foi recebido pela Constituição, artigo 6º, redação da EC
26/2000.
Ocorre.
mais adiante, o STF entender que “o único imóvel (bem de família) de uma pessoa
que assume a condição de fiador em contrato de aluguel pode ser penhorado, em caso
de inadimplência do locatário” (RE nº 407.688).
O
plenário, defrontou-se com duas questões primaciais: (i) prevalecer a liberdade
individual e constitucional de alguém ser ou não fiador, e arcar com essa
respectiva responsabilidade; (ii) ou prevalecer o direito social à moradia,
previsto na Constituição. E decidiu pela primeira, ao proferir, por maioria,
alinhando-se com o relator ministro Cezar Peluso, que o artigo 3º, inciso VII
da Lei 8.009/90 não estaria em confronto com o texto constitucional, ao permitir
a penhora do bem de família do fiador, para o pagamento de dívidas decorrentes
de aluguel.
O
ministro Eros Grau divergiu do relator, acompanhado pelos ministros Carlos
Ayres de Brito e Celso de Mello, no sentido de afastar a possibilidade de
penhora do bem de família do fiador, citando-se, então, como precedentes os RE
352.940 e 449.657, de relatoria do ministro Carlos Velloso.
A
tese resultou afirmada, em 2010, quando o STF no RE 612.360, em sede de
repercussão geral (Tema 295), assentou a constitucionalidade da penhora de bem
de família pertencente a fiador de contrato de locação, ementando:
"É
constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de
locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no artigo 3°, VII,
da lei 8.009/90 com o direito à moradia consagrado no artigo 6° da CF, com
redação da EC 26/20."
Sucede
que o STF, por sua 1ª Turma, ao julgar o RE 605.709, em 12.06.2018,
efetivou distinguishing, para concluir que o bem de família de fiador em
contrato de locação comercial não se submeteria ao Tema 295 da repercussão
geral, e por isso, impenhorável (03)
Finalmente,
sob o Tema 1.127, em sede de repercussão geral no RE 1.307.334, julgado em
09.03.2022, o STF, com relatoria do ministro Alexandre de Moraes, arrematou: “É
constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de
locação, seja residencial, seja comercial." (04)
3.
Leituras do STJ. A jurisprudência do STJ tem, de há muito, norteado que casais
separados, viúva sem filhos, irmãos solteiros e a pessoa só (havida como
“família single”) terão de ser protegidos pelo instituto do bem de família,
quando os imóveis por eles habitados, singularmente, são, inexoravelmente,
considerados como bens de família e de consequência, impenhoráveis.
Bem
de ver a Súmula 364 do STJ: “O conceito de impenhorabilidade de bem de família
abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”.
Esta súmula não foi revogada.
Para
além disso, o STJ tem norteado, dentro da vigência do atual CPC, sobre a
existência do bem de família legal, bastando referir:
(i)
no AgInt no Agravo em Recurso Especial 2.010.681 (2021/0361451-2), sob a
relatoria do ministro Luís Felipe Salomão, em 5.04.2022, o STJ pronunciou:
(...)
1. O bem de família legal (Lei n. 8.009/1990) e o convencional (Código Civil)
coexistem no ordenamento jurídico, harmoniosamente. A disciplina legal tem como
instituidor o próprio Estado e volta-se para o sujeito de direito - entidade
familiar -, pretendendo resguardar-lhe a dignidade por meio da proteção do
imóvel que lhe sirva de residência. (...) 2. O bem de família legal dispensa a
realização de ato jurídico, bastando para sua formalização que o imóvel se
destine à residência familiar” (05)
(ii)
“É possível a penhora de fração ideal de bem de família, nas hipóteses legais,
desde que possível o desmembramento do imóvel, sem sua descaracterização (STJ –
AgInt. no RESp. n. 1.663.895-PR, Rel. Min. Marco Buzzi, j. em 30.09.2019)
4.
Bem de família pluralizado. Destarte, impende ainda considerar que há uma
pluralidade de bens protegidos pela Lei 8.009/1990 a impedir a penhora do bem
de família. Este bem legal abrange mais de um imóvel do devedor quando, a
rigor, o instituto da impenhorabilidade instituído pela referida lei, não se
destina apenas a proteger a família, em seu sentido estrito, mas, sim,
“resguardar o direito fundamental à moradia com base no princípio da dignidade
humana”.
Decisão
da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (maio/2013) em recurso especial
relatado pelo ministro Villas Bôas Cueva, tornou firme que a jurisprudência da
corte, vem admitir a pluralidade de bens havidos como bens de família (bens
impenhoráveis) a resguardar não somente o casal, mas a entidade familiar
expandida, quando da separação dos membros da família.
O
julgado considerou que “o conceito de entidade familiar deve ser entendido à
luz das alterações sociais que atingiram o direito de família. Somente assim é
que poderá haver sentido real na aplicação da Lei 8.009”, acentuou Villas
Cueva.
Segue-se
então admitir que nos casos de separação dos membros da família (família
nuclear: marido e mulher, pais e filhos), a entidade familiar básica não se
extingue para os efeitos de impenhorabilidade do bem de família. Muito ao
revés, esta entidade surge em duplicidade. Na hipótese do julgamento, uma
composta pelos cônjuges e outra composta pelas filhas de um deles.
Em
ser assim, mais de um bem imóvel pode ser caracterizado como bem de família, em
estando a entidade familiar presente neles todos. A decisão ganha relevo por
constituir uma tutela adequada e eficiente à proteção da família, como entidade
multifacetada, em seu conceito mais amplo.
O
mesmo sucede em situação dos filhos residentes fora do teto familiar (ou
daqueles oriundos de relação adulterina), como no caso julgado, onde duas
filhas de um dos cônjuges residiam em outro imóvel com a genitora. Situações
que tais estão a permitir a condição de bem de família do segundo imóvel do
devedor.
Segundo
o relator, ministro Villas Bôas Cueva, a garantia legal de impenhorabilidade
não poderia recair sobre um único imóvel, quando a família do devedor habitava
não apenas aquele do casal, mas também um outro, nele estando suas duas filhas.
Bem
se observa que a família fracionada espacialmente não desnatura o conceito de
entidade familiar e a própria instituição legal do Bem de família. A entidade
familiar persevera íntegra, em sua unidade compositiva dos seus membros, nada
obstante possa um e outro deles residir em outro imóvel, pertencente ao mesmo
titular.
Recolhe-se,
ainda, o exemplo de quando a matriarca prefere residir em imóvel de seu filho,
e não com este, em mesmo imóvel, sem descaracterizar, todavia, o bem de
família, prefigurando, assim, bem de família pluralizado. São situações
fundantes da realidade dignificante da entidade familiar, como tal considerada.
Como
explicou o ministro Villas Bôas Cueva, “o intuito da norma não é proteger o
devedor contra suas dívidas, tornando seus bens impenhoráveis, mas garantir a
proteção da entidade familiar no seu conceito mais amplo.”
Precisamente, diante do princípio de ponderação de interesses, a entidade familiar, em seu microuniverso, e a dignidade humana de seus membros prevalecem e devem prevalecer sobre qualquer direito creditório existente. Pensar em contrário significaria vulnerar direito constitucional de habitação, a permitir constrições indevidas de imóveis que sirvam de abrigo à família, constituída nuclearmente, ou a quaisquer de seus membros.
O
direito de habitação, aliás, é de tal magnitude que, aqui, vale lembrar,
destarte, a norma do artigo 1.831 do Código Civil, a dizer:
“Ao
cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem
prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação
relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o
único daquela natureza a inventariar.”
Com
efeito, já decidiu a 3ª Turma do STJ no sentido de que “(...) as filhas do
primeiro casamento não podem opor à segunda família do pai falecido, detentora
de direito real de habitação sobre imóvel objeto da herança, as prerrogativas
inerentes à propriedade de fração desse imóvel. Assim, elas não podem pedir a
alienação do patrimônio imobiliário para a apuração do quinhão que lhes é
devido”.
Certo
que o direito de habitação impede a alienação do imóvel para a partilha entre
herdeiros do referido bem, o mesmo direito, com identidade de razões, inibe a
penhora do bem, de família, em prestígio à garantia da segurança familiar que
dele se extrai.
5.
Conclusões. A dignidade das pessoas que integram a família, de per si, tem
patamar constitucional de direitos, que supera questões financeiras inerentes
àquelas do direito à execução de eventuais credores.
Para
além de ser exigível a permanente segurança jurídica, inibindo uma
jurisprudência sazonal ou de ocasião, há que se refletir sobre a prevalência da
especificação das leis especiais, não podendo o CPC com elas criar conflitos.
Fato
é que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de
Justiça, já na vigência do atual CPC, tem sido recorrente a proteger o bem de
família da lei especial, mesmo quando admite o fracionamento do bem imóvel, por
uma de suas quotas “ainda permitir a moradia e a dignidade da família”.
De
tal sentir, entenda-se, pois, que o Código de Processo Civil/2015, não regula
inteiramente a questão das impenhorabilidades, diante da lei especial do bem de
família legal. Como se trata de questão de ordem pública, o silencio permanente
dos pretórios superiores, a respeito, é quanto bastante para invalidar a tese
da não aplicação da lei especial diante do novo CPC.
O
bem de família legal é um patrimônio que em sentido ético-jurídico corresponde
a um patrimônio existencial ou um patrimônio de dignidade. Em seu espaço vital,
nele a família tem abrigo e, por isso mesmo, intocável.
(*) é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de
Pernambuco, membro da Academia Brasileira de Direito Civil e Instituto
Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) e membro fundador do Instituto
Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).
Referências
Ambas as
decisões referidas tiveram o mesmo relator.
(i)
TRF-2ª Região. Processo 0001004-79.2020.4.02.000, j. em 16.11.2020 Web:
https://www10.trf2.jus.br/portal?site=v2_jurisprudencia&client=v2_index&proxystylesheet=v2_index&filter=0&getfields=*&entqr=3&lr=lang_pt&ie=UTF-8&oe=UTF-8&output=xml_no_dtd&requiredfields=(-sin_proces_sigilo_judici:s).(-sin_sigilo_judici:s)&sort=date:D:S:d1&adv=1&content=body&base=JP-TRF&ulang=&access=p&entqrm=0&entsp=a&wc=200&wc_mc=0&ud=1&q=0001004-79.2020.4.02.0000+inmeta:gsaentity_BASE%3DInteiro%2520Teor&dnavs=inmeta:gsaentity_BASE%3DInteiro%2520Teor
(ii)
TRF-2ª – Processo 0010764-91.2016.4.02.0000. j. em 06.12.2019.
Web:
https://www10.trf2.jus.br/portal?q=0010764-91.2016.4.02.0000+&site=v2_jurisprudencia&client=v2_index&proxystylesheet=v2_index&filter=0&getfields=*&lr=lang_pt&oe=UTF-8&ie=UTF-8&output=xml_no_dtd&sort=date%3AD%3AS%3Ad1&entsp=a&adv=1&base=JP-TRF&wc=200&wc_mc=0&ud=1
SIMÕES,
Marcel Edvar. O Patrimônio no Direito Civil e no Direito Empresarial. Indaiatuba
(SP): Editora Foco, 2023, p. 148.
STF. 1ª
Turma. Web:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749168585
(04) STF.
Web:
https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15351417036&ext=.pdf
(05) STJ.
4ª Turma. Web:
https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=5&documento_sequencial=151424052®istro_numero=202103614512&peticao_numero=202200081872&publicacao_data=20220427&formato=PDF
Artigo publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico,
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