Da Redação
Se a sociedade deseja um
combate rápido e efetivo ao crime, por qual razão não é permitido que a polícia
invada uma casa a partir de qualquer suspeita, ou que o celular de uma pessoa
seja apreendido por decisão do investigador para a verificação de suposto
delito? A resposta está no Estado democrático de Direito, que garante, a um só
tempo, a submissão de todos à lei e a proteção dos direitos individuais
— como a liberdade, a intimidade, a ampla defesa e o devido processo
legal.
Esse sistema de proteção tem
base principal na Constituição, cujo artigo 5º, inciso LVI, proíbe a utilização, no processo, de
provas obtidas por meios ilícitos. O mesmo artigo estabelece a casa como asilo
inviolável, salvo em situações como o flagrante delito ou a entrada, durante o
dia, por determinação judicial (inciso XI); e o sigilo da correspondência e das
comunicações telegráficas, de dados e telefônicas (inciso XII). Como consequência, todo o sistema de
persecução penal precisa respeitar determinados limites, para que as provas não
venham posteriormente a ser consideradas ilícitas.
Entretanto, o crime não
conhece limites e está sempre modificando suas táticas para não ser descoberto,
enquanto a polícia busca desenvolver novos métodos de investigação. Nessa
corrida, uma linha — muitas vezes tênue — separa a legalidade da
ilegalidade nos atos investigatórios.
O Judiciário é continuamente
acionado para se pronunciar sobre eventuais nulidades nas provas, decorrentes
de vícios em procedimentos policiais. As decisões mais recentes do Superior
Tribunal de Justiça (STJ) sobre os meios de obtenção de provas são o objeto
desta matéria especial.
Ilegalidade em diligências no campo digital
A comunicação por celulares e pela internet é um dos fenômenos modernos mais
importantes nessa relação antagônica entre as novas práticas criminosas e os
limites da investigação policial. Em 2018, por exemplo, a 6ª Turma
declarou nula decisão judicial que autorizou o espelhamento do aplicativo
WhatsApp, por meio da página WhatsApp Web, como forma de obtenção de prova em
uma investigação sobre tráfico de drogas.
Para o colegiado, entre outros
fundamentos, a medida não poderia ser equiparada à interceptação telefônica, já
que esta permite a escuta apenas após autorização judicial, ao passo que o
espelhamento possibilita ao investigador acesso irrestrito a conversas
registradas antes, podendo, inclusive, interferir ativamente na troca de mensagens
entre os usuários.
Como consequência, a turma
anulou provas obtidas pela polícia após a apreensão e o espelhamento do celular
do investigado sem que, em relação ao uso do WhatsApp Web, ele tivesse dado o
seu consentimento.
"Para que ao caso de espelhamento
via QR Code fosse aplicável, por analogia, a legislação atinente às
interceptações telefônicas, com o propósito de dar suporte à conclusão de que
as duas medidas são admitidas pelo direito, seria imprescindível a
demonstração, por parte do intérprete, de similaridades entre os dois sistemas
de obtenção de provas, sobretudo no que diz respeito à operacionalização e ao
acesso às comunicações pertinentes", afirmou a relatora do recurso,
ministra Laurita Vaz (processo em segredo judicial).
Na mesma linha de
entendimento, em março deste ano, a 6ª Turma considerou inválida a
obtenção de provas a partir de prints da tela do WhatsApp Web. As imagens foram
entregues por um denunciante anônimo em caso de suspeita de corrupção (processo
em segredo judicial).
Impossibilidade de substituição de chips pela polícia
A 6ª Turma — ao julgar recurso sob a relatoria da ministra Laurita Vaz
— entendeu ser ilegal a substituição do chip do celular do
investigado por um número da polícia.
Para o colegiado, de modo
distinto da interceptação telefônica — em que somente os diálogos entre o
alvo interceptado e outras pessoas são captados —, a substituição do chip do
investigado por um da polícia, sem o conhecimento do alvo, daria ao
investigador a possibilidade de conversar com os seus contatos e gerenciar
todas as mensagens — hipótese de investigação que não tem previsão na
Constituição nem na Lei 9.296/1996 (processo em segredo judicial).
No REsp
1.630.097, a 5ª Turma estabeleceu que, sem o consentimento do réu ou
a prévia autorização judicial, é ilícita a prova colhida coercitivamente pela
polícia em conversas mantidas pelo investigado com outra pessoa em telefone
celular, por meio do recurso de viva-voz.
No caso dos autos, enquanto os
policiais abordavam dois homens que lhes pareceram suspeitos, o celular de um
deles recebeu uma ligação. Os agentes teriam exigido que o aparelho fosse
colocado no modo viva-voz e ouviram a mãe do suspeito pedir a ele que voltasse
para casa e entregasse certo "material" a uma pessoa que o aguardava.
Na sequência, os policiais foram até a residência e encontraram 11 gramas de
crack, acondicionados em 104 embalagens plásticas.
Segundo o relator, ministro
Joel Ilan Paciornik, a abordagem descrita no processo resultou em obtenção
ilícita de prova, já que o ato de colocar o telefone em viva-voz foi
involuntário e coercitivo, gerando verdadeira autoincriminação. O relator
lembrou que qualquer tipo de prova contra o réu que dependa dele mesmo só vale
se o ato for feito de maneira voluntária e consciente.
"A prova está
contaminada, diante do disposto na essência da teoria dos frutos da árvore
envenenada (fruits of the poisonous tree), consagrada no artigo 5º, inciso LVI,
da Constituição Federal, que proclama a nódoa de provas, supostamente
consideradas lícitas e admissíveis, mas obtidas a partir de outras declaradas
nulas pela forma ilícita de sua colheita", apontou o magistrado.
No HC
537.274, a 5ª Turma reforçou que é ilícita a prova oriunda do acesso
aos dados armazenados no celular, relativos a mensagens de texto, SMS e
conversas por meio de aplicativos, obtidos diretamente pela polícia no momento
da prisão em flagrante, sem prévia autorização judicial.
Entretanto, no caso julgado,
apesar de não ter havido autorização judicial, foi provado que o acusado
permitiu que os policiais acessassem as trocas de mensagens em seu celular,
motivo pelo qual o colegiado afastou a ilegalidade no procedimento investigatório.
Além disso, havia outras provas capazes de sustentar a condenação.
Necessidade de gravação
Muitos dos questionamentos sobre licitude de diligências policiais que chegam
ao STJ dizem respeito à abordagem pessoal e ao ingresso dos agentes em locais
privados — especialmente residências. Sobre esse tema, normalmente, os
debates envolvem o direito à inviolabilidade do domicílio e a proteção da
intimidade, mas também a constatação de flagrância e a necessidade de ação
rápida por parte da polícia.
Em 2021, a 6ª Turma
firmou um precedente importante ao definir que os policiais, caso precisem
entrar em uma residência para investigar a ocorrência de crime e não tenham
mandado judicial, devem registrar a autorização do morador em vídeo e áudio,
como forma de não deixar dúvidas sobre o seu consentimento. A permissão para o
ingresso dos policiais no imóvel também deve ser registrada, sempre que
possível, por escrito.
No julgamento, o colegiado
fixou o prazo de um ano para o aparelhamento das polícias, o treinamento dos
agentes e as demais providências necessárias para evitar futuras situações de
ilicitude que possam, entre outros efeitos, resultar em responsabilização
administrativa, civil e penal dos policiais, além da anulação das provas
colhidas nas investigações.
Segundo o relator do caso,
ministro Rogerio Schietti Cruz, a inviolabilidade da moradia é uma das
expressões do direito à intimidade do indivíduo, o qual, sozinho ou na
companhia de sua família, espera ter o seu espaço íntimo preservado contra devassas
indiscriminadas e arbitrárias.
O magistrado explicou que as
circunstâncias anteriores à violação do domicílio devem ser capazes de
justificar a diligência e a eventual prisão em flagrante do suspeito. Essa
motivação, esclareceu, não pode derivar de simples desconfiança policial,
baseada em "atitude suspeita" ou na fuga do indivíduo em direção à
sua casa durante ronda ostensiva.
Além disso, Schietti lembrou
que são frequentes as notícias de abusos cometidos em operações policiais
realizadas em comunidades pobres, de modo que não se poderia atribuir valor
absoluto ao depoimento daqueles que são apontados como responsáveis por atos
abusivos. Dessa forma, para o ministro, o registro da diligência por meio
audiovisual garante não só a proteção dos direitos individuais, mas a
legalidade da ação policial para obtenção de provas dentro de residências (processo
em segredo judicial).
Denúncia e fuga não autorizam ingresso
Em posição semelhante, no RHC 89.853, a 5ª Turma estabeleceu que a
existência de denúncia anônima da prática de tráfico de drogas, somada à fuga
do acusado ao avistar a polícia, por si só, não configuram razões concretas
para autorizar o ingresso policial no domicílio do acusado sem a sua
autorização ou sem determinação judicial.
De acordo com o ministro
Ribeiro Dantas, não se exige apuração profunda, mas apenas uma breve
averiguação prévia — por exemplo, uma "campana" para verificar
movimentação suspeita na casa.
"relação ao material
passível de apreensão em diligências policiais, a 6ª Turma entendeu
que não existe exigência de que o mandado de busca e apreensão detalhe o
tipo de documento a ser apreendido, ainda que de natureza sigilosa. Como
consequência, o colegiado considerou válida operação policial que apreendeu
prontuários médicos no âmbito de investigação sobre cárcere privado mediante
internação em casa de saúde, além de maus-tratos contra pacientes."
Segundo o relator do caso,
ministro Sebastião Reis Júnior, o artigo 243 do Código de Processo Penal disciplina os
requisitos do mandado de busca e apreensão, entre os quais não está o
detalhamento do que pode ou não ser apreendido. Já o artigo 240 do código, apontou, apresenta rol
exemplificativo dos casos em que a medida pode ser determinada, no qual se
encontra a hipótese de arrecadação de objetos necessários à prova da infração,
não havendo qualquer ressalva de que os documentos não possam ser relativos à
intimidade ou à vida privada do indivíduo.
"O sigilo do qual se
reveste o prontuário médico pertence única e exclusivamente ao paciente, e não
ao médico. Assim, caso houvesse a violação do direito à intimidade, haveria de
ser arguida pelos seus titulares (pacientes), e não pelo investigado",
afirmou o ministro (processo em segredo judicial).
Ainda no tocante ao material
apreendido, no RHC
59.414, a Quinta Turma definiu que a ausência de lacre em todos os
documentos e bens recolhidos pela polícia não torna automaticamente ilegítima a
prova obtida. O entendimento foi fixado em processo por formação de quadrilha,
corrupção e outros crimes, no qual um dos réus alegou que, quando os policiais
federais estiveram na sede de sua empresa para cumprir mandados de busca e
apreensão, não lacraram os objetos recolhidos, como computadores, documentos e
discos rígidos.
Segundo o ministro Reynaldo
Soares da Fonseca, a ausência de lacre se deveu à grande quantidade e bens
apreendidos. Para o relator, sem haver informações sobre adulteração do
material recolhido, a simples ausência do lacre não tem a capacidade de anular
a diligência e a ação penal.
"A defesa do acusado não
alega ou aponta eventual prejuízo, nem sequer afirma qualquer nulidade na
decisão que determinou a busca e apreensão, como o descumprimento dos ditames
do artigo 240 e seguintes do Código de Processo Penal, bem assim que os
documentos ou bens apreendidos foram efetivamente corrompidos, limitando-se a
inferir/deduzir que a ausência de lacre em todo o material colhido era
suficiente para transformar a prova em ilícita e a nulidade em absoluta",
reforçou o magistrado, ao negar o pedido de anulação das provas.
Falta de diligências antes de revista íntima
Diversos outros precedentes foram firmados pelo STJ a respeito da legalidade
das diligências policiais. No REsp
1.695.349, a 6ª Turma considerou ilícita a prova obtida por meio de revista
íntima realizada com base unicamente em denúncia anônima. Segundo o processo,
com base em denúncia de que a acusada tentaria entrar no presídio com drogas,
os agentes penitenciários submeteram-na a revista íntima e encontraram cerca de
45 gramas de maconha na vagina.
O ministro Schietti afirmou
que, sem diligências prévias para apurar a plausibilidade da informação
anônima, não seria possível autorizar a realização da revista íntima, sob pena
se esvaziar o direito constitucional à intimidade, à honra e à imagem da
pessoa.
"Em que pese eventual
boa-fé dos agentes penitenciários, não havia elementos objetivos e racionais
que justificassem a realização de revista íntima. Eis a razão pela qual são
ilícitas as provas obtidas por meio da medida invasiva, bem como todas as que
delas decorreram (por força da teoria dos frutos da árvore envenenada), o que
impõe a absolvição dos acusados, por ausência de provas acerca da materialidade
do delito", concluiu o magistrado.
Outro aspecto que gera
controvérsias judiciais em investigações é o encontro casual de provas — a
teoria da serendipidade. No RHC
117.113, a 5ª Turma definiu que são válidas as provas encontradas ao acaso
pela polícia, relativas a crime até então desconhecido, durante diligência
regularmente autorizada para a obtenção de provas de outro crime, ainda que os
investigados ou réus em cada caso não sejam os mesmos.
De acordo com o colegiado, o encontro fortuito de provas é válido mesmo que não exista conexão ou continência entre os crimes e o delito descoberto não cumpra os requisitos autorizadores da diligência, e desde que não haja desvio de finalidade na execução do meio de obtenção de prova.
Com informações da assessoria do
STJ.
REsp 1.630.097
HC 537.274
REsp 1.630.097
HC 537.274
RHC 89.853
REsp 1.695.349
RHC 117.113
Para ler mais acesse, www: professortacianomedrado.co
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