Foto ilustração
A
ministra Maria Cláudia Bucchianeri concedeu liminar na Representação
0600859-89.2022.6.00.0000 determinando a remoção de conteúdos publicados na
internet que traziam conteúdo pleno de desinformação.
O
apuro argumentativo da decisão mostra um trabalho cuidadoso, quase artesanal de
construção e organização das ideias. No árido campo das questões referentes à
liberdade de expressão o magistrado age como um médico que atende um paciente
fragilíssimo. É preciso avaliar cuidadosamente a necessidade de qualquer
intromissão, invasão ou mediação, ponderando benefícios e contraindicações e
realizando apenas as intervenções mais delicadas e indispensáveis, que produzam
as cicatrizes mais imperceptíveis e os resultados proveitosos.
Contudo,
mesmo o mais conservador dos cirurgiões não pode ignorar a agressividade e os
riscos de um câncer. Nesse caso, cada dia de hesitação e cuidado pode representar
um avanço maior do mal. Contra aquilo que se reproduz e se espalha sem controle
gerando malefícios incomensuráveis não cabe esperar. Ainda assim, é necessário
que se estabeleça um protocolo para que o bisturi não corte além do necessário,
nem decepe o algo útil, um caminho de precisão para extirpar apenas aquilo que
realmente é indesejado.
A
realidade é que a profusão de redes sociais e a facilidade do acesso ao
conteúdo que nelas circula livremente acabaram transformando a Justiça
Eleitoral em um verdadeiro centro cirúrgico que permanece de plantão em tempo
integral, sempre à espera de novos pacientes e, frequentemente, confrontada com
os dilemas típicos do cirurgião.
Atuação da Justiça Eleitoral frente à desinformação
Um dos temas candentes do momento diz respeito ao estabelecimento de paradigmas
de atuação da Justiça Eleitoral na análise de casos referentes à propaganda que
envolvam episódios de desinformação. O livre mercado de ideias políticas
certamente se funda na ampla circulação de opiniões, exigindo que toda
intervenção seja pontual e circunstancial. Por outro lado, é certo que qualquer
mercado, mesmo os mais avessos a amarras, demanda o estabelecimento de regras
mínimas de funcionamento, sob pena de colapso.
Quando
se fala do processo de difusão de informações no ambiente eleitoral, na tábua
de regras essenciais certamente haverá inscrita, como norma matriz, a vedação
do induzimento do eleitor ao erro no momento da formação do seu processo de
escolha política.
Nesse
cenário, é importante balizar nitidamente os espaços que competem aos direitos
fundamentais, uma vez que em qualquer regime constitucional maduro inexistem
direitos absolutos ou infensos a restrições. Limitações, aliás, que quase
sempre emanam da própria Constituição e servem para apascentar conflitos e
dificultar o indesejado abuso de direito, seja pelo Estado, seja pelos próprios
particulares.
No
campo da liberdade de pensamento, ainda que todas as forças devam ser
empreendidas para garantir a livre circulação de ideias, esse processo não pode
ocorrer de forma desregrada, pois em todas as circunstâncias há que se
preservar a integridade do ambiente informativo. Afinal, direitos fundamentais
não podem servir de escudo para a ofensa a outros direitos de igual matriz.
Desse
modo, informações inverídicas, falseadas, descontextualizadas, enviesadas,
manipuladas, recortadas e adulteradas não podem ser compreendidas como parcela
da liberdade de expressão, do livre pensamento, da manifestação sem amarras ou
do direito à galhofa. A repetição frequente de um conteúdo inverídico não
possui o poder de transformá-lo miraculosamente em verdade inconteste digno de
defesa jurídica, na realidade, o ato servirá apenas para torná-lo mais nocivo,
dada a sua amplitude e capacidade de induzir pessoas ao erro.
O
papel que compete à Justiça Eleitoral quando confrontada com o manejo de
mecanismos de desinformação no corpo da propaganda, ainda que pontual, será de
buscar preservar a liberdade de formação das escolhas pelos eleitores, sem que
haja o uso de meios que possam induzi-los ao erro. Essa constatação, por si só,
não torna a tarefa mais fácil de ser executada, pois são muitos os conceitos
indeterminados que precisam ser manejados.
É
certo, entretanto, que os limites para a propaganda eleitoral vêm sendo cuidadosamente
desenhados pela jurisprudência das cortes eleitorais e pelo trabalho dos
estudiosos da matéria. Dessa maneira, é possível afiançar que a Justiça
Eleitoral deve efetivamente agir quando deparar com algumas das seguintes
situações: difusão de fatos sabidamente inverídicos, indevidamente recortados
ou gravemente descontextualizados, desvirtuamento de conteúdos e falas, criação
de discursos e manifestações jamais realizadas e alteração deliberada do que
foi efetivamente manifestado.
Todas
as situações narradas, não raro, são incrementadas com o uso de aparatos
tecnológicos como a trucagem de vídeos, a manipulação de áudios e a edição de
imagens, o que potencializa o efeito e a gravidade do ato. Ademais, os
objetivos podem ser variados, contudo, mas comumente tais posturas visam a
desconstrução deliberada de figuras públicas e a formulação de propaganda
negativa. Não se trata, portanto, de um processo de conquista de corações, mas
uma atuação deliberada para destruição de reputações.
A
ação, nessas situações, não representa uma afronta ao direito à livre
manifestação do pensamento, ao inverso, nesses casos, busca-se assegurar que os
eleitores tendo a acesso a informações com um padrão mínimo de qualidade e
veracidade possam usufruir livremente do seu direito de escolha política. A
desinformação corrompe a capacidade de escolha do cidadão, uma vez que cria
realidades paralelas que podem modificar a sua compreensão dos fatos. Só
haverá escolha verdadeiramente livre em ambiente imune à desinformação.
À guisa de conclusão
O direito à liberdade de expressão e manifestação de pensamento é uma pedra
preciosa de maior valor na Constituição Federal de 1988, contudo, isso não o
torna imune a limites. Não há direito absoluto. É impossível o cometimento de
ilícitos utilizando como manto protetor direito fundamental. Alguns cânceres
resultam em uma grave perda de peso, mas isso não os transforma em fármaco
contra a obesidade.
A
Justiça Eleitoral seguirá em seu plantão de defesa da liberdade de pensamento
na propaganda atuando sempre de forma pontual, mas com olhos atentos à
veracidade da informação ofertada aos eleitores e ciente da necessidade de
proteção da honra daqueles que se apresentam como candidatos.
Artigo publicado originalmente
na Revista Consultor Jurídico (Link)
(*) Secretário geral adjunto da Abradep, doutorando em Políticas Públicas pela UFPI (Universidade Federal do Piauí) e mestre em Direito pela PUC-RS.
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